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O acordo de não-persecução penal passível de ser celebrado pelo Ministério Público: breves reflexões

O Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução nº 181, de agosto de 2017, publicada em 8 de setembro de 2017. Esse ato normativo de natureza infralegal dispôs sobre a instauração e a tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público, tendo introduzido, no sistema brasileiro, a figura do “acordo de não-persecução penal”. Trata-se de ajuste passível de ser celebrado entre o Ministério Público e o investigado, acompanhado por seu advogado, e que, uma vez cumprido, ensejará a promoção de arquivamento da investigação. O objetivo de nossas breves reflexões é o de identificar as dificuldades a serem enfrentadas para a sua implementação, a começar pela natureza do ato normativo que o veicula.

 

           O Conselho Nacional do Ministério Público editou a Resolução nº 181, de agosto de 2017, publicada em 8 de setembro, dia imediatamente anterior à elaboração destas breves reflexões. Esse ato normativo de natureza infralegal dispôs sobre a instauração e a tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público, tendo introduzido, no sistema brasileiro, a figura do “acordo de não-persecução penal”. Trata-se de ajuste passível de ser celebrado entre o Ministério Público e o investigado, acompanhado por seu advogado, e que, uma vez cumprido, ensejará a promoção de arquivamento da investigação.

            O acordo, conforme o art. 18, pressupõe que o investigado confesse formalmente a prática da infração penal em que não haja violência ou grave ameaça à pessoa, indique provas de seu cometimento e ainda cumpra, de forma cumulativa, ou não, os seguintes requisitos: “I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima; II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, de modo a gerar resultados práticos equivalentes aos efeitos genéricos da condenação, nos termos e condições estabelecidos pelos artigos 91 e 92 do Código Penal; III – comunicar ao Ministério Público eventual mudança de endereço, número de telefone ou e-mail; IV – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público; V – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; VI – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada”. A possibilidade de os requisitos serem cumpridos de forma cumulativa, ou não, denota que devem apresentar uma relação de proporcionalidade em relação à infração penal, não estando submetidos apenas ao arbítrio do membro do Ministério Público.

            O acordo, que pode ser celebrado por ocasião da audiência de custódia, não é admitido quando “I – for cabível a transação penal, nos termos da lei; II – o dano causado for superior a vinte salários-mínimos ou a parâmetro diverso definido pelo respectivo órgão de coordenação; III – o investigado incorra em alguma das hipóteses previstas no art. 76, § 2º, da Lei n. 9.099/95; IV – o aguardo para o cumprimento do acordo possa acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal”.

          Trata-se de nítida mitigação ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. O sistema brasileiro tem encampado a consensualidade no direito penal, que pode redundar na redução das sanções ou, no extremo, na própria concessão do perdão. Essa consensualidade, em qualquer caso, sempre estará condicionada à apreciação judicial. Vide Lei nº 8.072/1990, que dispõe sobre os crimes hediondos, arts. 7º e 8º, parágrafo único; Lei nº 9.807/1999, que trata da proteção às testemunhas, arts. 13 e 14; Lei nº 9.034/1995, revogada pela Lei nº 12.850/2013, que dispunha sobre as organizações criminosas (art. 6º); Lei nº 9.080/1995, que incluiu um § 2º no art. 25 da Lei nº 7.492/1986, diploma este que versa sobre os crimes contra o sistema financeiro nacional, e um parágrafo único, de conteúdo idêntico, no art. 16 da Lei nº 8.137/1990, que trata dos crimes contra a ordem tributária; Lei nº 9.613/1998, que versa sobre o combate à lavagem de dinheiro (art. 1º, § 5º); Lei nº 11.343/2006, que dispõe sobre o tráfico ilícito de substâncias entorpecentes (art. 41). Na sistemática dessas leis não há celebração de verdadeiro acordo, mas, sim, posterior avaliação, pelo juízo competente, da colaboração do réu para a elucidação dos fatos. Trata-se, portanto, de uma "consensualidade escalonada", em que, primeiro, ocorre a colaboração, e, em um segundo momento, a sua avaliação. Foi a Lei nº 12.850/2013, ao dispor sobre as organizações criminosas, que traçou os contornos de um verdadeiro acordo, celebrado por ocasião da colaboração premiada. Ainda merece menção a Medida Provisória nº 2.055/2000, convertida na Lei nº 10.149/2000, que alterou a Lei nº 8.884/1994 e dispôs sobre o acordo de leniência a ser celebrado por autoridades administrativas, nos casos de infração contra a ordem econômica. Esse acordo, mantido pela Lei nº 12.529/2011, que revogou parcialmente a Lei nº 8.884/1994, produz reflexos no plano criminal, acarretando a extinção da punibilidade. Para contornar os possíveis vícios decorrentes da não participação do Ministério Público, dominus litis da ação penal, a Instituição tem sido chamada a firmá-lo em conjunto com o CADE. Nesse ajuste, que se aproxima do acordo de não-persecução penal a que se refere a Resolução CNMP nº 181/2017, a lei, repita-se, a lei, afastou a necessidade de homologação judicial para que o acordo produza efeitos na seara penal. Também não passa pela homologação judicial o acordo de leniência a que se refere o art. 16 da Lei nº 12.846/2013, passível de ser celebrado pelas pessoas jurídicas no plano administrativo e que reduz as sanções a serem aplicadas no plano judicial cível.

           Na disciplina da Resolução CNMP nº 181/2017, não são aplicadas verdadeiras penas, já que os requisitos a serem cumpridos são individualizados em momento anterior à persecução penal, excluindo-a. Acresça-se que o objeto do acordo não importa em qualquer ruptura com o sistema vigente, que admite a celebração de ajustes inclusive em relação ao quantum da pena privativa de liberdade a ser cumprida, afastando a tradicional tese da indisponibilidade do interesse. Além disso, os requisitos que mais se assemelham às sanções previstas na legislação penal, especificamente às penas restritivas de direitos, são a prestação de serviço à comunidade e o pagamento de prestação pecuniária, os quais sequer redundam em privação da liberdade.

           O maior complicador, no entanto, reside no fato de o acordo celebrado com base na Resolução CNMP nº 181/2017 não ser homologado pelo Judiciário. O que o juízo competente fará é analisar a promoção de arquivamento, a ser formulada após a celebração do acordo, e, caso entenda que o ajuste é ilegal ou que os requisitos nele estabelecidos não foram suficientes à prevenção penal, geral ou especial, remeterá os autos, conforme o caso, ao Procurador-Geral de Justiça ou à Câmara de Coordenação e Revisão, que pode insistir no arquivamento ou determinar o prosseguimento das investigações ou o oferecimento de denúncia. O juízo valorativo final, portanto, passa do Poder judiciário ao Ministério Público. Há, ainda, mais um complicador para o investigado, que pode vir a cumprir o acordo, exatamente nos termos em que celebrado, e, por fim, responder a um processo penal. Basta, para tanto, que o juízo rejeite o arquivamento e o Procurador-Geral determine o oferecimento de denúncia.

            Também é plenamente possível que a vítima, valendo-se do disposto no art. 5º, LIX, da Constituição da República, ajuíze a ação penal privada subsidiária da pública, em razão do não oferecimento da denúncia, pelo Ministério Público, no prazo legal. Afinal, se há prova da materialidade e o investigado confessou a prática da infração penal, indicando outros elementos probatórios que corroborem sua narrativa, muito provavelmente as investigações serão concluídas. De acordo com a lei processual, que ignora a existência desse tipo de ajuste, ou o expediente deveria ser arquivado ou o caso levado a juízo. Assim, como justificar a “suspensão” de qualquer juízo valorativo, pelo Ministério Público, até que o investigado cumpra o acordo? Dever-se-á interpretar o lapso temporal para o cumprimento do acordo como correlato a uma investigação já finalizada?

            Outro aspecto digno de nota é o de que as medidas acordadas pelas partes, a exemplo do que se verifica em relação à transação penal a que se refere o art. 76 da Lei nº 9.099/1995 e o art. 1º da Lei nº 10.259/2011, não terão a natureza de sanção penal e não produzirão os efeitos daí decorrentes (v.g.: reincidência), lembrando-se que a transação é homologada pelo Poder Judiciário.

           O § 8º do art. 18 ainda acresce que “cumprido integralmente o acordo, o Ministério Público promoverá o arquivamento da investigação, sendo que esse pronunciamento, desde que esteja em conformidade com as leis e com esta resolução, vinculará toda a Instituição”. Ora, ou a atribuição é exclusiva do órgão de execução que celebrou o acordo e o conteúdo desse parágrafo já estaria naturalmente inserido no princípio do Promotor Natural, ou tal exclusividade não ocorre, daí decorrendo a natural inferência lógica de que não pode a referida Resolução restringir a atuação de outros órgãos da Instituição sob pena de afronta ao mesmo princípio. Ou será que o objetivo é vincular o órgão de controle interno na hipótese do art. 28 Código de Processo Penal? Se a resposta a este questionamento for positiva, será evidente a sua injuridicidade, justamente por inviabilizar o exercício de uma atribuição prevista em lei.

            Por fim, vale lembrar que o caput do art. 18 da Resolução CNMP nº 181/2017 não deixa margem a dúvidas de que a celebração do acordo de não-persecução penal é uma faculdade do Ministério Público, não um direito subjetivo do réu. Como o juízo final a respeito de sua viabilidade jurídica foi situado no âmbito da própria Instituição, é bem provável que produza relevantes efeitos pragmáticos caso: (1) os membros da Instituição reconheçam a juridicidade do acordo e sua relevância, passando a propô-lo; (2) os órgãos de controle interno, caso provocados pelo Poder Judiciário, adiram a esse entendimento, não determinando, de modo generalizado, o ajuizamento da ação penal; e (3) os Tribunais, caso venham a ser provocados (v.g.: com o ajuizamento da ação penal pela vítima ou pelo próprio Ministério Público, neste caso após o cumprimento do acordo, por determinação do órgão de controle interno; ou por algum legitimado à deflagração do controle concentrado de constitucionalidade), reconheçam que o nosso caótico sistema penal justifica o surgimento desse acordo, cuja possibilidade de celebração estaria ínsita nas funções institucionais do Ministério Público, não constituindo propriamente uma inovação da lei processual penal, de competência legislativa privativa da União (CR/1988, art. 22, I), com o necessário concurso do Congresso Nacional (CR/1988, art. 48, caput).

            Os objetivos do acordo de não-persecução penal são mais que nobres e adequados à nossa realidade. Espera-se, sinceramente, que produzam bons frutos e, na eventualidade de se considerar inadequada a forma utilizada para a sua inserção na ordem jurídica, que ao menos a ideia frutifique e contribua para demonstrar que uma visão atávica do denominado princípio da obrigatoriedade caminha em norte contrário à nossa realidade social e à estrutura dos órgãos de persecução penal.


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