Em qualquer Estado de Direito, os mecanismos de controle externo tendem a desenvolver uma postura adversarial em relação aos órgãos controlados. Não se trata propriamente de uma postura beligerante, mas mera consequência da dialética argumentativa, em que controlador e controlado podem ter entendimentos distintos a respeito da mesma situação fática ou jurídica. É justamente em razão dessa constatação que os Tribunais de Contas possuem plena autonomia para o exercício de suas funções regulares. À atuação do Ministério Público de Contas, mesmo em relação ao próprio Tribunal de Contas, não basta a mera autonomia funcional, pois também aqui a adversariedade pode aflorar. Autonomia administrativa e financeira são exigências prementes ao livre exercício funcional. Este é o objeto de nossas breves reflexões.
Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. A linha evolutiva do Tribunal de Contas e do Ministério Público de Contas no direito brasileiro; 2.1. Natureza jurídica e principais atribuições do Tribunal de Contas; 3. A autonomia que o Ministério Público de Contas não possui; 4. As práticas adversariais do Ministério Público de Contas e a impostergável necessidade de ampliar a sua autonomia; Epílogo; Referências bibliográficas.
- Aspectos introdutórios
A existência das estruturas estatais, por imperativo lógico, está direcionada à satisfação do interesse público. Trata-se de concepção de contornos abstratos e grande volatilidade conceitual, que tem sua essência densificada a partir do teor de direitos e deveres reconhecidos pela ordem jurídica, em especial daqueles de estatura constitucional, e de valores juridicamente relevantes, considerando as peculiaridades da situação concreta do objeto de apreciação.
Um ato que afronte a legalidade ou a moralidade estará a jusante do interesse público, o mesmo ocorrendo em relação ao que desconsidere os valores colhidos no ambiente sociopolítico ou decorra de avaliação equivocada ou voluntariamente deturpada da realidade sobre a qual se projetará. Vícios dos atos estatais, historicamente catalogados pelo direito administrativo, como os de legalidade e legitimidade, os erros de fato e de apreciação e a teoria do abuso de poder, sempre afetarão, em última ratio, o interesse público.
Portanto, nestas breves linhas, optamos por utilizar o interesse público como metáfora indicativa da correção do atuar administrativo. Trata-se de metaconceito indissociável de qualquer ato estatal.
É possível afirmar que o interesse público, em razão de suas características existenciais, possui contornos esféricos. Deve apresentar, ontologicamente, uma essência uniforme em relação a todas as estruturas estatais, ainda que cada uma delas possa visualizá-lo de distintas maneiras, realizando avaliações diversas do conteúdo da norma, dos valores envolvidos e dos próprios objetivos a serem alcançados. Os contornos esféricos indicam que o interesse público não se compatibiliza com a concepção de lados ou feições, que oscilariam conforme a estrutura estatal que o visualizasse, o que estimularia o surgimento de posturas adversariais.
Na medida em que as estruturas estatais atuam conforme a regra de competência, o que viabiliza a sua coexistência no sistema, é intuitivo que divergências exógenas, sob o prisma dos entes não competentes, não terão relevância jurídica. Se o Estado diverge de uma política pública municipal, por exemplo, pouco terá a fazer senão deixar de externar qualquer apoio institucional, em especial com a realização de transferências financeiras voluntárias. A divergência exógena, no entanto, assume importância quando surge no âmbito dos órgãos de controle externo, entre os quais assume especial relevo o Tribunal de Contas competente.
Mas se o interesse público é essencialmente esférico, harmonizando-se com a convergência, não com a adversariedade, como justificar divergências entre o órgão competente para a prática do ato administrativo e o Tribunal de Contas? Em rigor lógico, a uniformidade conceitual do interesse público não impedirá o surgimento de sucessivas conflitualidades no processo de construção do seu sentido. Essas conflitualidade tendem a se desenvolver inicialmente no plano interno, inclusive a partir da atuação dos mecanismos de controle ali existentes, até serem solucionadas pela autoridade que ocupe o ápice do escalonamento hierárquico. Podem projetar-se, ademais, no plano externo, a partir de juízos valorativos distintos realizados pelos órgãos de controle, como o Tribunal de Contas. Neste caso, ou o agente público se resignará ao entendimento do órgão de controle ou a questão pode vir a ser submetida ao Poder Judiciário. Com isso, no processo de construção de um conceito ontologicamente uniforme, tem-se uma postura nitidamente adversarial.
O objetivo do Tribunal de Contas, obviamente, não é e não pode ser o de estimular e construir o conflito. O conflito, em verdade, decorre do processo democrático de construção da convergência, somente podendo surgir onde há pluralismo de ideias e liberdade para expressá-las livremente. É justamente aqui que surge a imprescindibilidade da autonomia do Tribunal de Contas. Sem essa autonomia, o processo de construção do interesse público deixaria de ser dialogal e assumiria os contornos de um monólogo. Essa constatação, não é exagero afirmar, integra o rol da obviedades ululantes. Afinal, em nossa atual quadra de evolução, poucas vozes (sãs) ousariam afirmar que o Tribunal de Contas não precisa de autonomia para bem desempenhar suas funções.
O que chama nossa atenção, e este é o objeto destas breves considerações, é que a autonomia do Ministério Público de Contas parece ser vista por nossos poderes constituídos como algo ontologicamente irrelevante. Para demonstrarmos a incorreção desse entendimento, percorreremos quatro vetores de análise distintos e complementares entre si, que são a linha evolutiva do Tribunal de Contas e do Ministério Público de Contas no direito brasileiro; a natureza jurídica e as principais atribuições do Tribunal de Contas; a autonomia que o Ministério Público de Contas não tem e deveria ter; e as práticas adversariais inerentes à sua atuação e que tornam impostergável a outorga dessa autonomia.
- A linha evolutiva do Tribunal de Contas e do Ministério Público de Contas no direito brasileiro
À gestão dos recursos públicos, desde os tempos mais remotos, está associada a necessária existência de mecanismos de controle, permitindo seja aferida a efetiva aplicação desses recursos nos fins estabelecidos pelo detentor do poder. Em sua expressão mais rudimentar, o controle seria exercido pelo próprio soberano ou por agentes de sua confiança, origem remota da concepção de controle interno. Com o evolver do Estado, surgiram órgãos específicos, tecnicamente qualificados, independentes ou não, responsáveis pela análise das contas de outros órgãos e agentes estatais, originando a concepção de controle externo. Enquanto o controle interno conta com níveis mínimos ou inexistentes de adversariedade, esses níveis são sensivelmente potencializados no controle externo. Incipiente ou aprimorado, pode-se afirmar que o controle de contas é mecanismo inseparável da riqueza pública e da necessidade de aplicá-la a objetivos previamente definidos.
Manifestações de controle externo das contas públicas já eram vistas na Grécia antiga, função desempenhada por agentes eleitos anualmente pelo povo, e em Roma, onde o Senado, ou comissão especial a ele vinculada, incumbia-se dessa tarefa. No Estado medieval, merece referência o exemplo português, em que a Casa dos Contos, criada no reinado de D. Dinis (Século XIV) e que passou a gozar de relativa autonomia no reinado de D. João I (Regimento de 5 de julho de 1389), fiscalizou receitas e despesas públicas até a extinção em 1761, no reinado de D. José, sendo substituída pelo Erário Régio ou Tesouro Real (Tavares, 1998: 26) – no mesmo ano eram instituídos os Conselhos de Fazenda no Brasil. No Estado Contemporâneo, verifica-se a criação de Tribunais de Contas na França (1807), na Holanda (1820), na Bélgica (1831) e na Itália (1862), sistemática que não se estendeu aos Estados anglo-saxônicos, mais especificamente à Inglaterra e ao Estados Unidos, onde o próprio legislativo, por comissões específicas, também realiza o controle das contas.
No direito norte-americano, merece referência o Government Accountability Office (GAO), órgão vinculado ao Congresso e que é responsável pela auditoria, tanto financeira, como de performance, e avaliação da execução financeira a cargo dos órgãos públicos federais. O órgão, em seus contornos atuais, foi delineado pelo Budget and Accouting Act de 1921, diploma que lhe conferiu competência não só para zelar, como, também, para sugerir o aprimoramento do sistema, o que seria feito por meio de relatórios e recomendações “looking to greater economy or efficiency in public expenditures” [Sec. 312 (a), 42 Stat. 25]. Sua designação inicial, no entanto, era General Accounting Office, tendo sido alterada pela atual em 2004. O órgão é chefiado pelo Comptroller General of the United States, profissional sem vínculo partidário, escolhido pelo Presidente da República a partir de uma lista com ao menos 3 (três) nomes elaborada por uma Comissão do Congresso, e que é investido na função pelo lapso de 15 (quinze) anos, período que não pode ser renovado. Sua destituição do cargo somente feita pelo Congresso.
No Brasil, a Constituição de 1824 (art. 170) previu a instalação de um órgão, o “Tesouro Nacional”, incumbido da receita e da despesa da fazenda nacional, não sendo propriamente um órgão de controle externo. Pimenta Bueno (1958: 89) já advertia que “[e’] de suma necessidade a criação de um tribunal de contas, devidamente organizado, que examine e compare a fidelidade das despesas com os créditos votados, as receitas com as leis do imposto, que perscrute e siga pelo testemunho de documentos autênticos em todos os seus movimentos a aplicação e emprêgo dos valores do estado e que enfim possa assegurar a realidade e legalidade das contas. Sem êsse poderoso auxiliar nada conseguirão as câmaras”.
Somente com a Constituição de 1891 (art. 89), recepcionando a iniciativa do Decreto nº 966-A, de 7 de novembro de 1890, que já dispusera sobre a existência do Tribunal e com a decisiva influência de Rui Barbosa, é que efetivamente se criou um “tribunal de contas”, “para liquidar as contas da receita e da despesa” e, em especial, “verificar a sua legalidade”. Como assinalado pelo Mestre (vol. VI, 1934: 427), “[o] Governo Provisorio reconheceu a urgencia inevitavel de reorganiza-lo; e acredita haver lançado os fundamentos para essa reforma radical com a criação de um Tribunal de Contas, corpo de magistratura intermediaria á administração e á legislatura, que, collocado em posição autônoma, com attribuições de revisão e julgamento, cercado de garantias contra quaesquer ameaças, possa exercer as suas funcções vitaes no organismo constitucional, sem risco de converter-se em instituição de ornato apparatoso e inutil.” E mais adiante arremata: o Tribunal de Contas é “da essencia da probidade administrativa no systema dos Governos Populares” (vol. VI, 1934: 445). O seu primeiro regulamento, o Decreto nº 1.166/1892, conferiu ao Tribunal as atribuições de fiscalizar a administração financeira e tomar contas dos responsáveis por dinheiros ou bens públicos, sendo o órgão instalado em 17 de janeiro de 1893. Em sua primeira formação, o Tribunal era composto “de cinco membros, o presidente e quatro directores”, um dos quais, necessariamente formado em direito, representando o Ministério Público (arts. 19 e 47, caput, do Decreto nº 1.166/1892).
No âmbito dos Estados-membros, a primeira unidade federada a contar com o seu Tribunal de Contas foi o Estado do Piauí, tendo a criação ocorrido em 27 de maio de 1891 e a instalação em 1º de agosto de 1899. Em relação ao Tribunal de Contas dos Municípios, o primeiro deles foi criado no Estado do Ceará, por força da Lei Estadual nº 2.243, de 24 de junho de 1954 (Cf. Luiz Sérgio Gadelha Vieira, 2012: 5).
Como já tivemos oportunidade de afirmar (2017: 137-145), o Decreto nº 392/1896, que tratou da reorganização do Tribunal de Contas, dispôs, em seu art. 1º, 5 e 6, que o membro do Ministério Público em atuação perante o Tribunal seria nomeado pelo Presidente da República, assistiria às reuniões e tomaria parte nas discussões, isso sem direito a voto, bem como desempenharia as atribuições conferidas pela legislação de regência. Esse Diploma Normativo foi regulamentado pelo Decreto nº 2.409/1896, que tratou do Ministério Público em seu Capítulo IV, integrado pelos arts. 80 a 87. De acordo com o seu art. 81, “[o] Representante do Ministério Público é o guarda da observância das leis fiscais e dos interesses da Fazenda perante o Tribunal de Contas. Conquanto represente os interesses da Pública Administração, não é todavia delegado especial e limitado desta, antes tem personalidade própria e no interesse da lei, da justiça e da Fazenda Pública tem inteira liberdade de ação”. O art. 84, por sua vez, estabeleceu-lhe as seguintes atribuições: “§ 1º Promover perante o Tribunal de Contas os interesses da Fazenda e requerer tudo que for a bem e para ressalva dos direitos da mesma; § 2º Promover a revisão das contas em que se der erro, omissão, falsidade ou duplicata em prejuizo da Fazenda; § 3º Levar ao conhecimento do Ministerio respectivo qualquer dolo, alidade, concussão our peculato que dos papeis sujeitos ao Tribunal se verificar haver o responsavel praticado no exercicio de suas funcções; § 4º Promover a imposição das multas que ao Tribunal caiba infligir e dada a imposição comunicar o facto remetendo cópia do acto que a houver deliberado ao procurador seccional para tornar efectiva a cobrança; § 5º Responder de direito nos papeis de que lhe for dada vista por despacho do presidente do Tribunal; e § 6º Remetter ao procurador seccional cópias authenticas das sentenças proferidas pelo Tribunal na tomada das contas de responsaveis para ser promovida a execução da mesma, perante o juiz federal da secção”.
O Decreto nº 13.247/1918, ao reorganizar o Tribunal de Contas, estabeleceu, em seu art. 3º, que o seu quadro de pessoal seria integrado por “I – Corpo deliberativo; II – Corpo especial; III – Corpo instructivo; e IV – Ministério Público”.
Ao Ministério Público foi dedicada toda uma seção, sendo previsto, no art. 23, que “[o] Ministerio Publico junto ao Tribunal de Contas, com a missão propria de promover, completar instrucção e requerer no interesse da administração, da justiça e da fazenda pública, constará de dois representantes, com as denominações de primeiro representante e segundo representante, com igual categoria e vencimentos, tendo cada um deles o seu auxiliar, com a denominação de adjuncto”. A opção de inserir o Ministério Público na própria estrutura do Tribunal de Contas continuou a ser prestigiada pelas normas editadas em momento posterior (vide a Lei nº 156/1935, arts. 2º e 18 a 20, editada sob a égide da Constituição de 1934; Decreto-Lei nº 426/1938, arts. 2º, 16 e 17, amparado pela Constituição de 1937; Lei nº 830/1949, arts. 3º e 29 a 33, promulgada na vigência da Constituição de 1946). A distinção do Ministério Público junto ao Tribunal em relação ao Ministério Público comum era bem perceptível pelo teor do art. 30 da Lei nº 830/1949, que assim dispunha sobre a escolha dos membros daquele órgão: “[o] Procurador e o Adjunto do Procurador serão nomeados pelo Presidente da República, dentre os cidadãos brasileiros, o primeiro com os requisitos exigidos para a nomeação dos Ministros do Tribunal e o segundo, que comprove o exercício, por cinco anos no mínimo, de cargo de magistratura ou de Ministério Público ou advocacia”.
A Constituição de 1934 conferiu ao Tribunal de Contas uma disciplina que, conquanto sintética, era extremamente avançada para a época. De acordo com o seu art. 99, “[é] mantido o Tribunal de Contas, que, diretamente ou por delegações organizadas de acordo com a lei, acompanhará a execução orçamentária e julgará as contas dos responsáveis por dinheiro ou por bens públicos”. Verifica-se, aqui, (1) a preocupação com a capilaridade do Tribunal e o consequente aumento de sua eficiência, objetivos a serem alcançados por meio de “delegações organizadas de acordo com a lei”; (2) a inovação de, romper com a tradição, que cingia a atuação do Tribunal à mera liquidação da receita e da despesa, e atribuir-lhe competência para acompanhar a execução orçamentária, o que evitava o conhecimento da ilegalidade quando já se mostrasse irreversível; e (3) a outorga da competência de julgar as contas dos administradores da res pública.
A sistemática foi preservada pela Constituição de 1937 (art. 114), que acresceu, ainda, a competência de apreciar “a legalidade dos contratos celebrados pela União”. No entanto, com o evolver da ditadura Vargas, essas competências tornaram-se quase que inteiramente semânticas. Afinal, o controle das contas públicas melhor se afeiçoa aos regimes democráticos, não aos autocráticos e ditatoriais. Não é por outra razão, por exemplo, que o Tribunal de Contas do Piauí foi extinto em 10 de março de 1931, somente voltando a operar em 24 de maio de 1946, com a redemocratização do País; o de São Paulo deixou de atuar em 12 de dezembro de 1930, somente sendo restabelecido em 7 de janeiro de 1947; e o do Ceará foi extinto em 4 de julho de 1939, ressurgindo em 14 de dezembro de 1945 (Cf. Luiz Sérgio Gadelha Vieira, 2012: 5).
A Constituição de 1946 (art. 77) restabeleceu as competências do Tribunal, que passou a julgar, também, a legalidade das aposentadorias, reformas e pensões. A Constituição de 1967 (art. 71, § 1º), no que foi secundada pela Emenda Constitucional nº 1/1969 (art. 70, § 1º), reduziu as competências do Tribunal. A Constituição de 1967, art. 73, § 5º, em preceito reproduzido pela Emenda Constitucional nº 1/1969 (art. 72, § 5º), fez a primeira referência ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas no plano constitucional, dispondo que “[o] Tribunal de Contas, de ofício ou mediante provocação do Ministério Público ou das Auditorias Financeiras e Orçamentárias e demais órgãos auxiliares, se verificar a ilegalidade de qualquer despesa, inclusive as decorrentes de contratos, aposentadorias, reformas e pensões, deverá (...)”, e vêm em seguida as providências cabíveis. O Decreto-Lei nº 199/1967 veiculou a nova Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, e preservou, em seus arts. 3º e 18 a 21, a sistemática anteriormente adotada pela Lei nº 830/1949.
Com a edição da Lei nº 6.223, de 14 de julho de 1975, modificada pela Lei nº 6.525/1978, que “[d]ispõe sobre a fiscalização financeira e orçamentária da União, pelo Congresso Nacional, e dá outras providências”, restaram superadas as divergências em relação à competência do Tribunal para fiscalizar os inúmeros entes da administração indireta, com personalidade jurídica de direito privado, criados pela União com base no Decreto-Lei nº 200/1967. Era o que dispunha o art. 7º da Lei nº 6.223/1975: “[a]s entidades com personalidade jurídica de direito privado, de cujo capital a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município ou qualquer entidade da respectiva administração indireta seja detentor da totalidade ou da maioria das ações ordinárias, ficam submetidas à fiscalização financeira do Tribunal de Contas competente, sem prejuízo do controle exercido pelo Poder Executivo”, o que era extensivo às “fundações instituídas ou mantidas pelo Poder Público” (art. 8º).
A promulgação da Constituição de 1988 fez que os Tribunais de Contas alcançassem o auge de sua maturidade orgânica e funcional: tiveram sua autonomia reconhecida e receberam um extenso rol de competências, o que certamente decorreu da influência dos ares democráticos que sopraram em solo brasileiro. Afinal, o Tribunal de Contas é uma Instituição essencialmente democrática: existe para lembrar aos administradores públicos que devem atuar em harmonia com as normas vigentes, cuja origem remota é a soberania popular, e que a res é pública, não privada.
A Constituição de 1988 fez referência ao Ministério Público junto aos Tribunais de Contas em seus arts. 130 (“Aos membros do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas aplicam-se as disposições desta Seção pertinentes a direitos, vedações e forma de investidura.”) e 73, § 2º, I (dispõe que os Ministros do Tribunal de Contas da União serão escolhidos “um terço pelo Presidente da República, com aprovação do Senado Federal, sendo dois alternadamente dentre auditores e membros do Ministério Público junto ao Tribunal, indicados em lista tríplice pelo Tribunal, segundo os critérios de antiguidade e merecimento”). Em 16 de julho de 1992, foi editada a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, que, preservando a sistemática tradicionalmente adotada no direito brasileiro, previu a existência de um Ministério Público especial junto ao Tribunal (arts. 80 a 84). Esse órgão é integrado por um Procurador-Geral, três Subprocuradores-Gerais e quatro Procuradores, estando previsto que o ingresso na carreira se dá nesse último cargo, exigindo a aprovação em concurso público de provas e títulos, assegurada a participação da OAB, e que a diferença de vencimentos entre cada uma das classes não poderia ser superior a dez por cento. O Supremo Tribunal Federal, apreciando a Lei Orgânica do Tribunal de Contas da União, decidiu pela constitucionalidade dos preceitos que preveem a existência de um Ministério Público dissociado dos únicos ramos contemplados no texto constitucional.
Outro importante passo na linha evolutiva dos Tribunais de Contas brasileiros foi dado com o aumento do intercâmbio de informações entre eles. Um marco de destaque nesse processo foi a operacionalização do “Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios Brasileiros” (PROMOEX), programa de apoio financeiro e logístico adotado com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento e das esferas federal, estadual e distrital, contando, ainda, com o apoio do Governo Federal, realçando-se a atuação do Ministério do Planejamento (vide Lei nº 11.131/2005), e que exigia a adesão dos Tribunais de Contas interessados. O Programa foi inicialmente concebido para atendimento das novas demandas surgidas com o advento da Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), tendo, como uma de suas funcionalidades básicas, a redução da assimetria entre os Tribunais de Contas. Contava com metas a serem alcançadas e grupos temáticos integrados por representantes dos Tribunais de Contas (v.g.: Grupo da Lei de Responsabilidade Fiscal, Grupo de Tecnologia da Informação, Grupo de Controle Fiscal, Grupo de Auditoria Operacional, Grupo de Planejamento etc.). Cf. Heloisa Garcia Pinto, 2012: 9-15; e Luiz Sérgio Gadelha Vieira, 2012: 7-8.
2.1. Natureza e principais atribuições do Tribunal de Contas
A análise dos órgãos supremos de controle das finanças públicas em diferentes Estados, como observa Tavares (1998: 31-32), permite sejam identificados cinco elementos comuns: 1º) são órgãos públicos; 2º) constituem o nível mais elevado de controle; 3º) realizam um controle externo; 4º) possuem independência, mas com garantias de grau variado; e 5º) o Parlamento é o destinatário privilegiado de sua atividade. Esses órgãos costumam ser identificados pelas expressões Supreme Audit Institutions (SAI), Institutions Suprêmes de Contrôle des Finances Publiques (ISC) e Entidades Fiscalizadoras Superiores (EFS).
Em face das características comuns dos órgãos e dos problemas a serem enfrentados, foi criada, em 1953, no âmbito da Organização das Nações Unidas, a INTOSAI – International Organization of Supreme Audit Institutions –, organização internacional de cooperação que até agosto de 2007 contava com 186 (cento e oitenta e seis) membros, incluindo o Tribunal de Contas da União.
Os três sistemas de controle de contas podem ser divididos da seguinte forma: (1) o italiano clássico, com exame prévio e possibilidade de veto absoluto de todas as despesas que a Administração pretendia realizar; (2) o belga, com exame prévio e veto limitado, de modo que as divergências verificadas com a Administração fossem resolvidas pelo Parlamento; e (3) o francês clássico, somente com exame posterior, que historicamente sempre se mostrou pouco eficaz. Os sistemas contemporâneos se aproximam do belga, que não se compadece com o engessamento propiciado pelo veto absoluto ou com a leniência de um exclusivo controle a posteriori. Observa-se, no entanto, que esses sistemas raramente se apresentam em estado puro. O mais comum é que sejam combinados entre si.
O Tribunal de Contas brasileiro é uma estrutura autônoma de poder, de nível constitucional, destinada a auxiliar o Legislativo no controle externo das contas públicas. Sua autonomia se manifesta nos planos administrativo, financeiro e funcional, sendo descabida qualquer ingerência externa fora das hipóteses autorizadas na Constituição ou que, previstas na legislação infraconstitucional, a ela possam ser reconduzidas. A função de “auxiliar” o Legislativo deve ser compreendida em seus devidos termos, evitando-se qualquer tipo de distorção. Observa-se, inicialmente, que tanto o Tribunal de Contas, como o Congresso Nacional, estão funcionalmente vocacionados ao controle externo das contas públicas, tendo cada qual um rol de competências específicas. Essa divisão de competências é um claro indicativo de que o “auxílio” prestado pelo Tribunal de Contas reflete, em primeiro lugar, a concorrência de esforços em prol de objetivos comuns, e, em segundo lugar, o dever de prestar informações (CR/1988, art. 71, IV e § 4º) e atender às solicitações realizadas pelo Congresso Nacional (CR/1988, arts. 71, VII e 72, § 1º). Não há qualquer tipo de subordinação hierárquica entre o Tribunal de Contas e o Legislativo. Há, para o primeiro, tão somente o dever de bem exercer o munus que a Constituição lhe outorgou, o que inclui o relacionamento com o segundo em harmonia com a normatização de regência. Nas situações em que o Tribunal de Contas emite parecer a ser valorado pelo Congresso Nacional, cada qual exerce uma atribuição própria. O “auxílio”, por sua vez, decorre do fato de este último órgão principiar o exercício de sua função a partir do ponto em que o Tribunal de Contas cessou o exercício da sua.
A autonomia orgânica e a funcionalidade do Tribunal de Contas, a exemplo do que se verifica em relação ao Ministério Público, evidenciam a insuficiência do modelo oferecido por Montesquieu (Cf. Marcos Rolim, 2011: 6). Afinal, além das funções de administrar, legislar e julgar, outorgadas, respectivamente, aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, verifica-se a existência de outras funções que somente de modo acrítico podem ser reconduzidas à concepção mais ampla de “administrar”. É o que ocorre, por exemplo, com as funções de controlar (de modo externo, o que afasta a incidência do princípio hierárquico, inerente a uma estrutura tipicamente administrativa) e de promover (junto ao Poder Judiciário, a responsabilidade pelos ilícitos praticados ou a implementação de medidas de interesse social).
O Tribunal de Contas é órgão de controle eminentemente técnico, infenso, ao menos teoricamente, a injunções políticas. Tangencia a política no processo de recrutamento de seus membros, na interpretação da Constituição e na valoração de atos originariamente políticos, mas não é e não pode ser político ao avaliar o cumprimento de normas técnicas afetas à receita e à despesa pública. Mesmo quando invoca razões de conveniência (v.g.: a paralisação, ou não, de obra pública), o faz a partir de uma base técnica e com os olhos voltados ao interesse público, não sendo motivado por razões puramente políticas. A ele compete fiscalizar o cumprimento das regras e princípios jurídicos que disciplinam a utilização dos recursos públicos, estando sua competência disciplinada nos incisos do art. 71 da Constituição da República e na legislação infraconstitucional.
No plano constitucional, estão previstas, entre outras, o exercício das atividades (1) consultiva, ao emitir parecer prévio sobre as contas prestadas anualmente pelo Chefe do Executivo, que serão julgadas pelo Poder Legislativo (arts. 71, I; 49, IX; e 31, § 2º, da CR/88); (2) de aprovação, podendo sustar a execução de atos dissonantes da ordem jurídica, ainda que a despesa pública não tenha sido realizada (art. 71, X e parágrafos); (3) de julgamento, ao apreciar as contas dos gestores da coisa pública, que não o Chefe do Poder Executivo, podendo aprová-las ou rejeitá-las (art. 71, II, da CR/88); e (4) sancionadora, ao impor, aos agentes que tiveram suas contas rejeitadas, multa proporcional ao dano causado ao erário, bem como a obrigação de repará-lo (art. 71, VIII, da CR/88).
No âmbito infraconstitucional, são múltiplos os diplomas legais que dispõem sobre a competência do Tribunal de Contas, v.g.: (a) Lei Complementar nº 61/1989, que dispôs sobre a atuação do TCU na verificação do coeficiente de participação dos Estados na apuração do IPI (art. 3º); (b) Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), que previu a possibilidade de o Tribunal de Contas acompanhar o processo administrativo em que se imputa improbidade administrativa (art. 15); (c) Lei nº 8.666/1993 (Lei de Licitações), que conferiu atribuição ao Tribunal de Contas para acompanhar os editais de licitação e consagrou o direito de representação a respeito de qualquer irregularidade detectada na aplicação de suas disposições (art. 113); (d) Lei nº 8.730/1993, que outorgou ao TCU a atribuição de verificar a evolução patrimonial de agentes públicos vinculados aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem como ao Ministério Público (art. 1º); (e) Lei nº 11.494/2007, que trata do FUNDEB e que atribui ao Tribunal de Contas da União e às demais Cortes de Contas o dever de fiscalizar a aplicação das verbas e o consequente cumprimento do disposto no art. 212 da Constituição e no art. 60 do ADCT; (f) Lei nº 9.452/1997, que garante às Câmaras Municipais a possibilidade de encaminharem representação ao Tribunal de Contas da União sempre que não forem notificadas da liberação de recursos federais; e (g) Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que outorgou às Cortes de Contas o dever de emitir pareceres prévios, separadamente, a respeito das contas prestadas pelos Chefes de Poder e pelo Chefe do Ministério Público (art. 56, caput), bem como o dever de fiscalizar a regularidade da gestão e de alertar os Poderes ou órgãos sobre irregularidades que se mostram iminentes (art. 59). Acresça-se, ainda, que a Lei nº 10.028/2000 dispôs, em seu art. 5º, sobre inúmeras infrações administrativas passíveis de serem praticadas contra as leis de finanças públicas, tendo cominado multa de até trinta por cento dos vencimentos anuais do agente que lhe der causa e fixado a competência do Tribunal de Contas para a sua aplicação.
Não é necessário um aguçado espírito científico para se constatar que a adversariedade é da própria essência das atividades desempenhadas pelo Tribunal de Contas.
- A autonomia que o Ministério Público de Contas não possui
Socorrendo-nos das lições de Costantino Mortati (1967: 694), é possível afirmar que o significante autonomia, em um Estado Democrático de Direito, “segundo o seu significado (do grego: autos– si próprio, nemein – governar), quer significar a liberdade de determinação consentida para um sujeito, traduzindo-se no poder de estabelecer para si a lei reguladora da própria ação, ou, mais compreensivamente, o poder de prover os interesses próprios e, portanto, de gozar e dispor dos meios necessários para obter uma harmônica e coordenada satisfação dos mesmos interesses”.
A autonomia, no âmbito das estruturas estatais de poder, pode projetar-se nos âmbitos (a) funcional, indicando a liberdade de praticar os atos próprios do ofício, somente devendo obediência à juridicidade, sem influências exógenas; (b) administrativo, presente na capacidade de praticar os atos internos de gestão; e (c) financeiro, denotando a capacidade de elaborar sua proposta orçamentária e ordenar as respectivas despesas.
No entender do Supremo Tribunal Federal, a Constituição efetivamente previu a existência de um Ministério Público “especial” junto às Cortes de Contas. Ironicamente, o art. 80, caput, da Lei nº 8.443/1992 estendeu ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União os princípios da unidade, indivisibilidade e independência funcional. Como desdobramento dessa constatação, tem-se que uma Instituição dissociada de suas congêneres, doravante, terá sua unidade e indivisibilidade preservadas. Eis a ementa do julgado: “Lei nº 8.443/1992 – Ministério Público junto ao TCU – Instituição que não integra o Ministério Público da União – taxatividade do rol inscrito no art. 128, I, da Constituição – vinculação administrativa à Corte de Contas – competência do TCU para fazer instaurar o processo legislativo concernente à estruturação orgânica do Ministério Público que perante ele atua (CF, art. 73, caput, in fine) – matéria sujeita ao domínio normativo da legislação ordinária – enumeração exaustiva das hipóteses constitucionais de regramento mediante lei complementar – inteligência da norma inscrita no art. 130 da Constituição – ação direta improcedente. – O Ministério Público que atua perante o TCU qualifica-se como órgão de extração constitucional, eis que a sua existência jurídica resulta de expressa previsão normativa constante da Carta Política (art. 73, par. 2., I, e art. 130), sendo indiferente, para efeito de sua configuração jurídico-institucional, a circunstância de não constar do rol taxativo inscrito no art. 128, I, da Constituição, que define a estrutura orgânica do Ministério Público da União. – O Ministério Público junto ao TCU não dispõe de fisionomia institucional própria e, não obstante as expressivas garantias de ordem subjetiva concedidas aos seus Procuradores pela própria Constituição (art. 130), encontra-se consolidado na ‘intimidade estrutural’ dessa Corte de Contas, que se acha investida – até mesmo em função do poder de autogoverno que lhe confere a Carta Política (art. 73, caput, in fine) – da prerrogativa de fazer instaurar o processo legislativo concernente à sua organização, à sua estruturação interna, à definição do seu quadro de pessoal e à criação dos cargos respectivos. – Só cabe lei complementar, no sistema de direito positivo brasileiro, quando formalmente reclamada a sua edição por norma constitucional explícita. A especificidade do Ministério Público que atua perante o TCU, e cuja existência se projeta num domínio institucional absolutamente diverso daquele em que se insere o Ministério Público da União, faz com que a regulação de sua organização, a discriminação de suas atribuições e a definição de seu estatuto sejam passíveis de veiculação mediante simples lei ordinária, eis que a edição de lei complementar é reclamada, no que concerne ao Parquet, tão somente para a disciplina normativa do Ministério Público comum (CF, art. 128, § 5º). A cláusula de garantia inscrita no art. 130 da Constituição não se reveste de conteúdo orgânico- institucional. Acha-se vocacionada, no âmbito de sua destinação tutelar, a proteger os membros do Ministério Público especial no relevante desempenho de suas funções perante os Tribunais de Contas. Esse preceito da Lei Fundamental da República submete os integrantes do MP junto aos Tribunais de Contas ao mesmo estatuto jurídico que rege, no que concerne a direitos, vedações e forma de investidura no cargo, os membros do Ministério Público comum” (STF, Pleno, ADI nº 789/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. em 26/05/1994, DJU de 19/12/1994, p. 35.180).
É importante observar que a Lei nº 8.443/1992 não chegou a constituir propriamente uma inovação, pois, mesmo antes da Constituição de 1988, prática que foi mantida após a sua edição, já eram criados órgãos desvinculados da estrutura do Ministério Público da União e dos Ministérios Públicos dos Estados para atuar junto às Cortes de Contas.
No âmbito da Lei nº 8.625/1993, o seu art. 28 (“A atuação do Ministério Público junto aos Tribunais de Contas dos Estados, Conselhos de Contas e Tribunais Militares far-se-á na forma da Lei Complementar”) foi vetado sob o argumento de contrariar o art. 130 da Constituição da República, posição que terminou por ser acolhida pelo Supremo Tribunal Federal. Ante o disposto no art. 75 da Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal tem entendido que essa interpretação deverá prevalecer na organização e composição das Cortes de Contas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Nessa linha, o Tribunal já reconheceu a inconstitucionalidade de leis complementares estaduais que dispuseram sobre a atuação do Ministério Público Estadual junto ao Tribunal de Contas (STF, Pleno, ADI nº 1.545-1/SE, rel. Min. Octávio Gallotti, DJU de 24/10/1997, p. 54156; Pleno, ADI-MC nº 2.068/MG, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 15/12/1999, Inf. nº 175; Pleno, ADI nº 2.068/MG, rel. Min. Sydney Sanches, j. em 03/04/2003, Inf. nº 304; Pleno, ADI nº 2.884/RJ, rel. Min. Celso de Mello, j. em 02/12/2004; e Pleno, ADI nº 3.192, rel. Min. Eros Grau, j. em 24/05/2006, DJU de 31/05/2006; e Pleno, ADI nº 3.307/MT, rel. Min. Cármen Lúcia, j. em 02/02/2009, DJ de 29/05/2009).
À luz do entendimento da Corte, apesar de ser integrado por agentes que estão sujeitos ao mesmo regime jurídico dos agentes ministeriais em geral, o Ministério Público junto ao Tribunal de Contas não é dotado de características existenciais próprias. Em consequência, não goza de autonomia administrativa e financeira: “Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado de Goiás. EC nº 23/1998. Inconstitucionalidade. 1. Esta Corte já firmou orientação no sentido de que o Ministério Público que atua junto aos Tribunais de Contas não dispõe de fisionomia institucional própria (ADI 789, Celso de Mello, DJ de 19.12.94). 2. As expresses contidas no ato legislativo estadual que estendem ao Ministério Público junto ao Tribunal de Contas do Estado as prerrogativas do Ministério Público comum, sobretudo as relativas ‘à autonomia administrativa e financeira, à escolha, nomeação e destituição de seu titular e à iniciativa de sua lei de organização’ são inconstitucionais, visto que incompatíveis com a regra do art. 130 da Constituição Federal. 3. Disposição reintroduzida na Constituição do Estado de Goiás pela EC nº 23, de 9 de dezembro de 1998, malgrado o seu teor já houvesse sido declarado inconstitucional pelo STF (ADIMC 1.858/GO, Ilmar Galvão, j. na Sessão de 16.12.98). Medida cautelar deferida” (STF, ADI nº 2.378/GO, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 22/03/2001, DJU de 05/04/2002, p. 037. No mesmo sentido: STF, Pleno, ADI-MC nº 2.378/GO, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 22/03/2001, DJU de 05/04/2002. Quanto à lei de organização, como o órgão integra o próprio Tribunal de Contas, cabe a este, não àquele, “a iniciativa das leis concernentes à estrutura orgânica do Parquet que perante ele atua”, o que é decorrência do art. 73 da Constituição da República (STF, Pleno, ADI nº 2.378/GO, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 19/05/2004, DJU de 06/09/2007).
Em suma, junto às Cortes de Contas devem estar agregados Ministérios Públicos especiais, órgãos destituídos de autonomia administrativa e financeira e que em nada se confundem com as estruturas organizacionais previstas no art. 128 da Constituição da República: Ministério Público da União e Ministérios Públicos dos Estados. Em sentido contrário a esse entendimento, vide: José Afonso da Silva, 2004: 255. Somente os seus agentes gozam de independência funcional, não o órgão: “Ministério Público Especial junto aos Tribunais de Contas. Não lhe confere a Constituição Federal autonomia administrativa. Precedente: ADI 789. Também, em sua organização, ou estruturalmente, não é ele dotado de autonomia funcional (como sucede ao Ministério Público comum), pertencendo, individualmente, a seus membros, essa prerrogativa, nela compreendida a plena independência de atuação perante os poderes do Estado, a começar pela Corte junto à qual oficiam (Constituição, arts. 130 e 75)” – STF, Pleno, ADI nº 160/TO, rel. Min. Octávio Gallotti, j. em 23/04/1998, DJU de 20/11/1998, p. 002.
- As práticas adversariais do Ministério Público de Contas e a impostergável necessidade de ampliar a sua autonomia
O Tribunal de Contas, enquanto órgão de controle externo, invariavelmente adotará posturas adversariais com o só exercício de suas atividades finalísticas. Afinal, não é incomum que a sua concepção de interesse público apresente pontos de divergência em relação àquela ostentada pelos órgãos controlados. Como dissemos, é justamente em razão da adversariedade decorrente de sua atuação que se outorgou plena autonomia a esses Tribunais.
O Ministério Público de Contas, enquanto órgão inserido na estrutura do Tribunal de Contas, tende a ser automaticamente alcançado pela plena autonomia que o Tribunal possui em relação aos órgãos controlados. Essa constatação, no entanto, não põe fim ao problema. Em verdade, sequer tangencia a sua essência.
Em razão das próprias características de sua atuação, é perfeitamente possível, em situações normais e corriqueiras, que a adversariedade floresça entre o Ministério Público de Contas e o próprio Tribunal de Contas em cuja estrutura está inserido. Não podemos esquecer que o Ministério Público de Contas não é uma espécie de Procuradoria, um órgão de apoio técnico hierarquicamente subordinado e voltado ao fornecimento de subsídios técnicos ao órgão que assessora. Ao atribuir-lhe autonomia funcional, o sistema tornou faticamente possível que os seus juízos de valor divirjam daqueles formulados pelo Tribunal de Contas, divergência esta que tanto pode limitar-se ao plano jurídico como estender-se, de forma não muito transparente, a um juízo de conveniência e oportunidade.
Não podemos esquecer que os Tribunais de Contas, conquanto órgãos de controle essencialmente técnico, estão recheados de políticos de carreira em seus quadros. Há, inclusive, exemplos caricatos, como o de Conselheiros que sequer possuem escolaridade de nível superior e lá estão em razão de seus “notórios conhecimentos jurídicos, contábeis, econômicos e financeiros ou de administração pública.” Se a adversariedade jurídica é faticamente provável, a adversariedade decorrente da captação política do Tribunal não é faticamente impossível.
O Ministério Público de Contas, quer atuando como órgão agente, de modo a provocar a atuação do Tribunal de Contas, quer atuando como órgão interveniente, oficiando nos processos instaurados de ofício pelo Tribunal ou a partir de provocação de outros legitimados, pode adotar posturas que caminhem em norte contrário aos interesses dos integrantes do próprio Tribunal. Nesses casos, quid iuris? Afirmar que a autonomia funcional do Ministério Público de Contas seria suficiente para resguardar a sua atuação é levar a ingenuidade às raias do inusitado.
É factível que uma postura de confronto aberto entre o ente continente e o órgão conteúdo tende a gerar consequências funestas e imprevisíveis para este último. Soltas as rédeas da imaginação, é possível pensarmos em desestruturação do setor administrativo, com represálias singelas, como a falta deliberada do material de papelaria, ou extremas, com reflexos na própria política remuneratória, já que o Ministério Público de Contas não tem o poder de iniciativa legislativa e muito menos pode submeter ao Poder Legislativo a sua proposta orçamentária.
Nem se argumente que a atuação meramente provocativa ou opinativa do Ministério Público de Contas é claro indicativo de seu caráter acessório em relação ao Tribunal de Contas. Essa tese, aliás, por muito tempo permeou o Ministério Público comum. Para não cansarmos o leitor com uma longa digressão histórica a respeito da temática, basta pensarmos no seguinte: seria imaginável que o Procurador-Geral da República ajuizasse duas ações penais em face do Presidente da República, como testemunhamos em 2017, na época em que era livremente escolhido pelo Chefe do Poder Executivo entre não integrantes da carreira, sendo demissível ad nutum? Quais seriam as consequências para esse agente e para os membros concursados do Ministério Público da União caso tal ato fosse praticado numa época em que a autonomia financeira da Instituição não passava de um sonho distante? Alguém duvida que a autonomia funcional do Ministério Público seria insuficiente para amparar a sua livre atuação funcional?
Ainda que a atuação do Ministério Público de Contas apresente especificidades quando cotejada com aquela desempenhada pelo Ministério Público comum, não alcançando, por exemplo, o plano judicial, é factível que representa um importante fator de fiscalização do próprio Tribunal de Contas. Como se disse, não é faticamente impossível que o Tribunal seja cooptado por interesses político-partidários, máxime em razão da forma de escolha de parte de seus membros, ou, o que é pior, por uma das muitas organizações criminosas que se instalaram nas estruturas estatais de poder nos últimos anos. Nesses casos, exauridas as possibilidades internas, o Ministério Público de Contas, caso tenha verdadeira autonomia, poderá municiar, com destemor e sem riscos, outros órgãos de controle, a começar pelo Ministério Público comum.
Epílogo
Na teoria do poder estatal, é comezinho que o poder deve conter o avanço do próprio poder. Trata-se de concepção teórica que remonta aos estudos de Montesquieu a respeito da Constituição inglesa e se mostra indissociável de qualquer Estado Democrático de Direito. A estruturação do sistema de controle externo de modo a assegurar a autonomia dos órgãos controladores é consectário lógico da adversariedade decorrente de sua atuação funcional, o que exige sejam cercados de garantias que não permitam o desvirtuamento dessa atuação.
Do mesmo modo que é inconcebível seja subtraída a autonomia dos Tribunais de Contas, também é inconcebível que, em nossa atual quadra de evolução, ainda persistamos no erro (ou absurdo) de imaginar que a atuação do Ministério Público de Contas pode alcançar níveis ótimos de eficiência com a só autonomia funcional que lhe tem sido assegurada.
A só existência de um Ministério Público de Contas denota que a adversariedade em relação ao respectivo Tribunal de Contas é uma possibilidade não só palpável como provável. À luz desse quadro, como imaginar uma atuação profícua sem autonomia?
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