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A Lei Complementar nº 173/2020: o Programa Federativo de Enfrentamento ao Covid-19 e os seus contornos estruturais

A Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, é parte integrante de um conjunto de medidas editadas com o objetivo de assegurar a continuidade da gestão administrativa, nos distintos níveis federativos, apesar das intensas restrições no fluxo de caixa decorrentes da pandemia de Covid-19. Esse diploma normativo dispôs sobre o equacionamento das dívidas dos entes federativos para com a União; determinou a restruturação das operações de crédito contraídas junto ao sistema financeiro; disponibilizou recursos da União na forma de auxílio financeiro; promoveu alterações, de modo permanente ou provisório, na Lei Complementar nº 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), e ainda introduziu, em seu art. 8º, um regime jurídico específico, de caráter impositivo, estendendo-o a todas as categorias do funcionalismo público, ainda que contem com regimes próprios por determinação constitucional, a exemplo da Ministério Público, da Defensoria Pública e da Magistratura. A análise ora realizada decorreu de provocação do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e da Associação Nacional do Ministério Público (CONAMP), mas é perfeitamente extensiva à generalidade das estruturas de poder alcançadas pelo novel diploma normativo.

 

Reflexos, no âmbito do Ministério Público, da Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, que estabeleceu o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19) e alterou, de modo provisório ou permanente, a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.

 

I. Introdução.

1. Consultam-nos os Exmos. Srs. Presidentes do Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União (CNPG) e da Associação Nacional do Ministério Público (CONAMP), a respeito dos reflexos operados, no âmbito do Ministério Público, pela Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020.

2. A LC nº 173/2020 veiculou o “Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV- 2 (Covid-19)”, exclusivamente para o exercício financeiro de 2020. Esse Programa, conforme dispõe o seu art. 1º, foi instituído nos termos do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), o que significa dizer que a sua incidência pressupõe a decretação, pelo Poder Legislativo, do estado de calamidade pública ali previsto, o qual será analisado de modo mais detido nas observações ao art. 3º.

3. A LC nº 173/2020 alterou significativamente, em alguns casos de modo provisório, em outros de maneira definitiva, a LC nº 101/2000. Considerando que este diploma normativo, nos termos do seu art. 1º, § 3º, I, a, é aplicável à generalidade dos entes federativos, incluindo o Ministério Público, esse, por certo, é um dos principais impactos do novel diploma normativo no plano institucional. Além disso, estabeleceu diversos comandos e vedações, com realce para o disposto em seu art. 8º, direcionados aos entes federativos que se enquadrem no disposto no art. 65 da LC nº 101/2000.

4. A análise a ser realizada não descerá às minúcias de um manual de gestão. Limitar-se-á, apenas, a ressaltar os pontos mais polêmicos, considerando as peculiaridades do Ministério Público Brasileiro. Acresça-se que a presente manifestação é exarada no âmbito exclusivamente associativo-institucional, em nada se confundindo com o exercício da advocacia, possibilidade, aliás, vedada aos membros do Ministério Público. Trata-se de estudo jurídico cujo objetivo é tão somente o de subsidiar o debate a respeito da posição a ser assumida pelos distintos segmentos da Instituição em temática de tamanha relevância.

 

II. Projeção do alcance numa perspectiva lato sensu.

5. A LC nº 173/2020, ressalvados os preceitos que alteraram de modo definitivo a LC nº 101/2000, é especificamente direcionada, como se disse, ao exercício financeiro de 2020. Dispõe, em suas linhas gerais, sobre: (i) a suspensão do pagamento das dívidas que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios eventualmente tenham com a União; (ii) a reestruturação das operações de crédito que os Estados e os Municípios tenham contraído junto ao sistema financeiro e às instituições de crédito, o que significa dizer que possibilita o aumento do endividamento dos entes públicos; (iii) a disponibilização de recursos da União, na forma de auxílio financeiro, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, a serem usados em ações de enfrentamento ao Coronavírus; (iv) a dispensa da observância de diversos comandos da LC nº 101/2000, que buscam preservar o equilíbrio das contas públicas; (v) a imposição de vedações administrativas, especialmente no âmbito da gestão de pessoal, a todos os entes federativos cujo Poder Legislativo decrete calamidade pública com base no art. 65 da LC nº 101/2000.

6. Trata-se de símile, infraconstitucional, da Emenda Constitucional nº 106/2020, que veiculou o denominado “Orçamento de Guerra”, direcionado especificamente à União, que arrefeçou os limites ao endividamento público com a criação de um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações para atender às necessidades decorrentes do estado de calamidade reconhecido pelo Congresso Nacional (vide Decreto Legislativo nº 6/2020).

 

III. Projeção do alcance em sentido estrito.

III.I. Dos arts. 1º. e 2º.

7. A análise dos arts. 1º e 2º indica que a técnica legislativa adotada foi a de dispensar tratamento específico às dívidas contraídas pelos entes federativos com a União, conforme o diploma normativo que embasou o seu surgimento. A partir daí, são estabelecidas regras sobre suspensão de pagamento, impedimento à execução de dívida e direcionamento dos respectivos valores pelos entes federativos que deixarem de realizar os pagamentos à União.

8. Em relação à suspensão de pagamento das dívidas dos entes federativos para com a União, desde que tenham origem nos diplomas normativos referidos no inciso I do § 1º do art. 1º da LC nº 173/2020, sua eficácia é imediata, conforme dispõe o § 2º do art. 1º. Este último preceito ainda autoriza, mas não obriga, a União a aplicar a referida suspensão aos respectivos contratos de refinanciamento.

9. O art. 2º da LC nº 173/2020 impede a execução, pela União, das garantias de diversos contratos, celebrados com os entes federativos, com base nos atos normativos ali indicados. Caso os entes federativos decidam suspender os pagamentos dessas dívidas, os valores não pagos devem ser destinados aos fins referidos nesse preceito.

III.II. Do art. 3º.

10. Para permitir a realização das despesas públicas inicialmente não previstas para o presente exercício financeiro, já que decorrentes da pandemia, a LC nº 173/2020 ainda estabeleceu regras complementares à LC nº 101/2000, durante o estado de calamidade pública decretado com base em seu art. 65. Este último preceito, cuja redação também foi alterada pela LC nº 173/2020, estabeleceu normas específicas conforme a calamidade pública seja reconhecida (a) pelo Congresso Nacional, no caso da União, ou pelas Assembleias Legislativas, na hipótese dos Estados e Municípios; ou (b) pelo Congresso Nacional, em parte ou na integralidade do território nacional, e enquanto perdurar a situação.

11. Na situação (a), será suspensa a contagem dos prazos e das disposições estabelecidas nos arts. 23, 31 e 70, bem como dispensado o atingimento dos resultados fiscais e da limitação de empenho referidos no art. 9º. Todos esses preceitos, indistintamente, eram observados pelo Ministério Público.

12. O art. 9º da LC nº 101/2000 determina a limitação de empenho caso seja verificado que, ao final do bimestre, a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal. De acordo com o art. 23, se a despesa total com pessoal ultrapassar o limite de que trata o art. 20, fixado em 2% da receita corrente líquida para o Ministério Público Estadual, deverá ser promovida a sua redução nos dois quadrimestres seguintes. O art. 31 dispõe sobre a necessidade de redução da dívida consolidada (rectius: obrigações com amortização superior a 12 meses) de um ente da Federação, nos três quadrimestres seguintes, caso seja ultrapassado o respectivo limite ao final de um quadrimestre. O art. 70 veicula norma de transição, determinando a adequação das despesas de pessoal concernentes ao exercício anterior à entrada em vigor da LC nº 101/2000 que ultrapassassem os limites nela estabelecidos.

13. Na situação (b), também não precisará ser observado o disposto no art. 42 da LC nº 101/2000, que veda ao titular de Poder ou órgão referido no art. 20, preceito que inclui o Ministério Público, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito.

14. Cumpre ressaltar que o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020, do Presidente da República. Esta Mensagem, por sua vez, após expor os efeitos nefastos da pandemia, ressaltou, em seu penúltimo parágrafo, que, “em atenção ao permissivo contido no art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, é importante que se utilize, excepcionalmente, da medida lá prevista, no sentido de que, reconhecida a calamidade pública pelo Congresso Nacional e enquanto esta perdurar, a União seja dispensada do atingimento dos resultados fiscais e das limitações de empenho prevista no art. 9º da referida Lei Complementar”. A medida, portanto, foi decretada exclusivamente no âmbito da União, o que atrai a situação (a).

15. No que diz respeito às medidas complementares, que vigerão em conjunto com o regime previsto no art. 65 da Lei Complementar nº 101/2000, o art. 3º dispõe o seguinte:

“Art. 3º Durante o estado de calamidade pública decretado para o enfrentamento da Covid-19, além da aplicação do disposto no art. 65 da Lei Complementar nº 101/2000, ficam afastadas e dispensadas as disposições da referida Lei Complementar e de outras leis complementares, leis, decretos, portarias e outros atos normativos que tratem:
I - das condições e vedações previstas no art. 14, no inciso II caput do art. 16 e no art. 17 da Lei Complementar nº 101/2000;
II - dos demais limites e das condições para a realização e o recebimento de transferências voluntárias.
§ 1º O disposto neste artigo:
I - aplicar-se-á exclusivamente aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento deste Programa ou de convênios vigentes durante o estado de calamidades; e
II - não exime seus destinatários, ainda que após o término do período de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19, da observância das obrigações de transparência, controle e fiscalização referentes ao referido período, cujo atendimento será objeto de futura verificação pelos órgãos de fiscalização e controle respectivos, na forma por eles estabelecida;
§ 2º Para a assinatura dos aditivos autorizados nesta Lei Complementar, ficam dispensados os requisitos legais exigidos para a contratação com a União e a verificação dos requisitos exigidos pela Lei Complementar nº 101/2000”.

16. O art. 3º, como se percebe, trata de matérias bem diversificadas, muitas afetas prioritariamente ao Poder Executivo, a exemplo da renúncia de receitas (LC nº 173/2020, art. 3º, inc. I c.c. LC nº 101/2000, art. 14) e da realização de transferências voluntárias (LC nº 173/2020, art. 3º, inc. II), enquanto outras afetarão a generalidade das estruturas estatais de poder, incluindo o Ministério Público. É o que se verifica em relação à dispensa de cumprimento das normas que impõem, ao ordenador de despesa, a declaração de lastro orçamentário e financeiro para o aumento de despesa (LC nº 173/2020, art. 3º, I c.c. LC nº 101/2020, art. 16), incluindo aquelas de caráter continuado, assim consideradas as que se estendem por período superior a dois exercícios financeiros (LC nº 173/2020, art. 3º, I c.c. LC nº 101/2000, art. 17).

III.III. Do art. 4º.

17. O art. 4º busca contribuir para a reestruturação financeira e orçamentária dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no exercício 2020. Para tanto, possibilita a realização de aditamentos contratuais para a suspensão de pagamentos devidos a partir de operações de crédito interno e externo celebradas com o sistema financeiro e instituições multilaterais de crédito. Como o Ministério Público não realiza operações dessa natureza, não será alcançado por esse preceito.

III.IV. Do art. 5º.

18. Quanto à disponibilização de recursos, pela União, para que os entes federativos possam fazer face às necessidades decorrentes do enfrentamento à Covid-19, os valores e os critérios para entrega desse auxílio financeiro estão descritos no art. 5º da LC n. 173/2020. Face à própria destinação a ser atribuída a esses recursos, é apenas teórica a possibilidade de serem destinados ao Ministério Público. Caso o sejam, embora se entenda que não o serão, aplicar-se-á a regra do § 8º desse dispositivo, assim redigido:

“Art. 5º. (...)

§ 8º Sem prejuízo do disposto no art. 48 da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, em todas as aquisições de produtos e serviços com os recursos de que trata o inciso II do caput, Estados e Municípios darão preferência às microempresas e às empresas de pequeno porte, seja por contratação direta ou por exigência dos contratantes para subcontratação”.

III.V. Do art. 6º.

19. O art. 6º da Lei Complementar 173/2020 trata da possibilidade de securitização dos contratos de dívida dos entes federativos garantidos pela Secretaria do Tesouro Nacional, que sejam submetidos ao processo de reestruturação da dívida. Esse preceito, à evidência, não será aplicado ao Ministério Público.

III. VI. Do art. 7º.

20. Em norte contrário ao escopo transitório da maior parte dos preceitos da Lei Complementar nº 173/2020, o seu art. 7º promoveu alterações significativas e definitivas nos arts. 21 e 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que deverão ser observadas por todas as estruturas de poder, inclusive o Ministério Público. Eis o seu teor:

21. Art. 7º A Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, passa a vigorar com as seguintes alterações:

" Art. 21. É nulo de pleno direito:
I - o ato que provoque aumento da despesa com pessoal e não atenda:
a) às exigências dos arts. 16 e 17 desta Lei Complementar e o disposto no inciso XIII do caput do art. 37 e no § 1º do art. 169 da Constituição Federal;
b) ao limite legal de comprometimento aplicado às despesas com pessoal inativo;
II - o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20;
III - o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20;
IV - a aprovação, a edição ou a sanção, por Chefe do Poder Executivo, por Presidente e demais membros da Mesa ou órgão decisório equivalente do Poder Legislativo, por Presidente de Tribunal do Poder Judiciário e pelo Chefe do Ministério Público, da União e dos Estados, de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público, ou a edição de ato, por esses agentes, para nomeação de aprovados em concurso público, quando:
a) resultar em aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo; ou
b) resultar em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo.
§ 1º As restrições de que tratam os incisos II, III e IV:
I - devem ser aplicadas inclusive durante o período de recondução ou reeleição para o cargo de titular do Poder ou órgão autônomo; e
II - aplicam-se somente aos titulares ocupantes de cargo eletivo dos Poderes referidos no art. 20.
§ 2º Para fins do disposto neste artigo, serão considerados atos de nomeação ou de provimento de cargo público aqueles referidos no § 1º do art. 169 da Constituição Federal ou aqueles que, de qualquer modo, acarretem a criação ou o aumento de despesa obrigatória.” (NR)

“Art. 65……………………………………………………………..
§ 1º Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, nos termos de decreto legislativo, em parte ou na integralidade do território nacional e enquanto perdurar a situação, além do previsto nos inciso I e II do caput:
I - serão dispensados os limites, condições e demais restrições aplicáveis à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como sua verificação, para:
a) contratação e aditamento de operações de crédito;
b) concessão de garantias;
c) contratação entre entes da Federação; e
d) recebimento de transferências voluntárias;
II - serão dispensados os limites e afastadas as vedações e sanções previstas e decorrentes dos arts. 35, 37 e 42, bem como será dispensado o cumprimento do disposto no parágrafo único do art. 8º desta Lei Complementar, desde que os recursos arrecadados sejam destinados ao combate à calamidade pública;
III - serão afastadas as condições e as vedações previstas nos arts. 14, 16 e 17 desta Lei Complementar, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública.
§ 2º O disposto no § 1º deste artigo, observados os termos estabelecidos no decreto legislativo que reconhecer o estado de calamidade pública:
I - aplicar-se-á exclusivamente:
a) às unidades da Federação atingidas e localizadas no território em que for reconhecido o estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional e enquanto perdurar o referido estado de calamidade;
b) aos atos de gestão orçamentária e financeira necessários ao atendimento de despesas relacionadas ao cumprimento do decreto legislativo;
II - não afasta as disposições relativas a transparência, controle e fiscalização.
§ 3º No caso de aditamento de operações de crédito garantidas pela União com amparo no disposto no § 1º deste artigo, a garantia será mantida, não sendo necessária a alteração dos contratos de garantia e de contragarantia vigentes.”

III.VII. Do art. 8º

22. O art. 8º da LC nº 173/2020 impôs, até 31 de dezembro de 2021, diversas proibições aos entes federativos afetados pela pandemia, o que, à evidência, inclui os respectivos Ministérios Públicos. A incidência desse preceito pressupõe a decretação, pelo Poder Legislativo, do estado de calamidade pública a que se refere o art. 65 da LC nº 101/2000, projetando-se, de modo intenso e visceral, sobre a atividade administrativa, com destaque para a gestão de pessoal.

23. Eis a redação do referido dispositivo:

“Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:
I - conceder, a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade pública;
II - criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;
III - alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
IV - admitir ou contratar pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal, as contratações de temporários para prestação de serviço militar e as contratações de alunos de órgãos de formação de militares;
V - realizar concurso público, exceto para as reposições de vacâncias previstas no inciso IV;
VI - criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e de servidores e empregados públicos e militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivado de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à calamidade;
VII - criar despesa obrigatória de caráter continuado, ressalvado o disposto nos §§ 1º e 2º;
VIII - adotar medida que implique reajuste de despesa obrigatória acima da variação da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), observada a preservação do poder aquisitivo referida no inciso IV do caput do art. 7º da Constituição Federal;
IX - contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.
§ 1º O disposto nos incisos II, IV, VII e VIII do caput deste artigo não se aplica a medidas de combate à calamidade pública referida no caput cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.
§ 2º O disposto no inciso VII do caput não se aplica em caso de prévia compensação mediante aumento de receita ou redução de despesa, observado que:
I - em se tratando de despesa obrigatória de caráter continuado, assim compreendida aquela que fixe para o ente a obrigação legal de sua execução por período superior a 2 (dois) exercícios, as medidas de compensação deverão ser permanentes; e
II - não implementada a prévia compensação, a lei ou o ato será ineficaz enquanto não regularizado o vício, sem prejuízo de eventual ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3º A lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual poderão conter dispositivos e autorizações que versem sobre as vedações previstas neste artigo, desde que seus efeitos somente sejam implementados após o fim do prazo fixado, sendo vedada qualquer cláusula de retroatividade.
§ 4º O disposto neste artigo não se aplica ao direito de opção assegurado na Lei nº 13.681, de 18 de junho de 2018, bem como aos respectivos atos de transposição e de enquadramento.
§ 5º O disposto no inciso VI do caput deste artigo não se aplica aos profissionais de saúde e de assistência social, desde que relacionado a medidas de combate à calamidade pública referida no caput cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração”.

24. A respeito desse preceito, podem ser apresentadas algumas observações direcionadas aos problemas a serem enfrentados na gestão administrativa, conforme a natureza da vedação estabelecida. Desde logo, observa-se que alguns preceitos são direcionados ao legislador, obstando a edição de leis implementando as medidas vedadas, enquanto outros são direcionados ao administrador, o que, em certas situações, resulta na vedação à aplicação de leis preexistentes.

III.VII.I. Conceder vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração, salvo quando isto decorrer de sentença judicial transitada em julgado ou determinação legal anterior à calamidade pública.

25. As duas exceções previstas no inciso I do art. 8º foram igualmente inseridas no inciso VI desse preceito.

26. Especificamente em relação à existência de lei anterior à calamidade pública assegurando o direito, observa-se que os requisitos exigidos podem ser preenchidos no curso do período de calamidade. Direitos dessa natureza, assegurados no respectivo regime jurídico, não configuram a criação de despesa obrigatória de caráter continuado, vedada pelo inciso VII do art. 8º, já que tão somente implementam despesa já prevista na legislação de regência, não criando-a; e não resultam no reajuste de despesa obrigatória em patamares superiores aos da inflação, o que atrairia a vedação do inciso VIII do art. 8º.

27. A Administração Pública, por ser regida pela concepção de juridicidade, deve realizar um controle interno de caráter contínuo, anulando ou corrigindo atos ou omissões que se distanciem desse referencial. A partir dessa premissa, conclui-se que a correção de entendimento anterior, que afrontava a juridicidade, não é propriamente uma faculdade da Administração Pública, mas um dever, ainda que daí decorra algum reflexo na contraprestação estipendial paga aos agentes públicos. Nessa situação, o aumento, se for o caso, decorrerá de “determinação legal anterior à calamidade pública”, o qual vinha sendo obstado por um ato administrativo cuja injuridicidade foi identificada. Não será atraída, portanto, a primeira exceção mencionada, a exigência de sentença judicial transitada em julgado.

III.VII.II. Criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa, o que não obsta a transformação dos cargos existentes.

28. Nos termos do § 1º do art. 8º, não se aplica a medidas de combate à calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.

29. Com os olhos voltados à realidade do Ministério Público Estadual, o inciso II do art. 8º, a exemplo dos incisos I e III, não impedem a criação, o desmembramento, a transformação ou a elevação de entrância das Promotorias de Justiça, estruturas administrativas que, na sistemática da Lei nº 8.625/1993, congregam órgãos de execução, os Promotores de Justiça, e serviços auxiliares. A única exigência é a de que os cargos a serem utilizados nessa estrutura já existam, o que afasta o aumento de despesa, razão de ser da vedação do art. 8º.

III.VII.III. Alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa.

30. Em rigor lógico, trata-se de vedação direcionada ao legislador.

III.VII.IV. Admitir ou contratar pessoal, a qualquer título, à exceção de reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios e as contratações temporárias do art. 37, IX da Constituição de 1988.

31. Essa vedação, nos termos do § 1º do art. 8º, não se aplica às medidas de combate à calamidade pública decorrentes da pandemia de Covid-19, cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.

32. O inciso IV do art. 8º, em sua primeira parte, veda a admissão de pessoal a qualquer título, o que inclui os cargos de provimento efetivo e os cargos em comissão, destinando-se os últimos, nos termos do art. 37, V, da Constituição de 1988, “às atribuições de direção, chefia e assessoramento”. Em sua segunda parte, estabelece as exceções, permitindo apenas (a) as reposições dos cargos em comissão que não acarretem aumento de despesa; (b) as reposições decorrentes de vacância de cargos efetivos ou vitalícios; e (c) as contratações temporárias de que trata o art. 37, IX, da Constituição de 1988.

33. Uma intepretação sistemática dessas exceções permite afirmar que o aumento das despesas referido em (a) deve ser segmentado, considerando apenas o cargo em comissão a ser reposto, já que qualquer reposição dessa natureza, caso a vacância do cargo tenha ocorrido há algum tempo, acarretará naturalmente o aumento global da despesa com pessoal. Com isso, é vedado que, no momento da reposição, seja aumentada a remuneração paga ao ocupante do cargo. Caso o cargo esteja vago há muito tempo e, nesse ínterim, os valores pagos tenham sido reajustados, parece defensável, considerando a dinâmica administrativa, que essa diferença de valores seja absorvida com a não reposição dos ocupantes de outros cargos em comissão vagos, o que deve ser objeto da devida fundamentação. Essa visão global dos cargos em comissão mostra-se razoável considerando que a LC nº 173/2020 permite a reposição da totalidade deles. De modo mais objetivo, é possível afirmar que, qualquer aumento de despesas com os ocupantes de cargos em comissão, deve ser justificado com uma reposição; na hipótese de serem praticados valores remuneratórios mais elevados quando da reposição, deve ser promovida a compensação com o não preenchimento ou a exoneração do ocupante de outro cargo, no mesmo valor.

34. No que diz respeito às reposições referidas em (b) e (c), não há óbice a que haja aumento de despesa. Em se tratando de cargos efetivos ou vitalícios, isto ocorrerá quando os padrões estipendiais praticados à época da vacância tiverem sido aumentados até o momento da reposição. Quanto às contratações temporárias de que trata o art. 37, IX, da Constituição de 1988, na medida em que são infensas à continuidade, o mais comum é que, quando realizadas, acarretem o aumento de despesas considerando o status quo.

35. Ainda em relação às situações descritas em (a), (b) e (c), é importante ressaltar, uma vez mais, que o art. 8º, IV, somente permite a reposição, o que significa dizer que, em se tratando de cargos que jamais foram providos, de reposição não se poderá falar.

36. Mesmo que a vacância se estenda por longo lapso temporal, o só fato de o cargo já ter sido ocupado em dado momento de sua existência atrairá o conceito de reposição.

37. No que concerne ao periodo a ser considerado para fins de avaliação do aumento, ou não, da despesa de pessoal, duas possibilidades se abrem ao intérprete: considerar a integralidade do exercício financeiro ou aplicar analogicamente a avaliação quadrimestral de que trata o art. 22 da LC nº 101/2000. O complicador da primeira opção é o de não oferecer qualquer sistemática de restabelecimento da normalidade caso o excesso seja detectado. Considerando que tanto a LC nº 173/2020 como a LC nº 101/2000 tratam de finanças públicas e encontram a sua gênese no art. 163, I, da Constituição de 1988, a opção mais adequada parece ser o estabelecimento de um diálogo entre elas.

38. O disposto no inciso IV do art. 8º da LC nº 173/2020 coexiste com as vedações do art. 21 da LC nº 101/2000, que considera nulo de pleno direito “o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20” (inc. II); “o ato de que resulte aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular de Poder ou órgão referido no art. 20” (inc. III); e “a aprovação, a edição ou a sanção, por Chefe do Poder Executivo, por Presidente e demais membros da Mesa ou órgão decisório equivalente do Poder Legislativo, por Presidente de Tribunal do Poder Judiciário e pelo Chefe do Ministério Público, da União e dos Estados, de norma legal contendo plano de alteração, reajuste e reestruturação de carreiras do setor público, ou a edição de ato, por esses agentes, para nomeação de aprovados em concurso público, quando: a) resultar em aumento da despesa com pessoal nos 180 (cento e oitenta) dias anteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo; ou b) resultar em aumento da despesa com pessoal que preveja parcelas a serem implementadas em períodos posteriores ao final do mandato do titular do Poder Executivo” (inc. IV). Considerando que o art. 20 da LC nº 101/2000, ao qual remetem os incisos II e III, faz menção expressa ao Ministério Público, o mesmo ocorrendo com o inciso IV, não há dúvidas de que essas vedações são extensivas à Instituição. Apesar disso, não passa despercebido o disposto no inciso II do § 1º do art. 20 da LC nº 101/2000, com a redação dada pela LC nº 173/2020. De acordo com esse preceito, as restrições de que tratam os incisos II, III e IV somente são aplicáveis “aos titulares ocupantes de cargo eletivo dos Poderes referidos no art. 20”. Na medida em que os Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados são escolhidos pelo Chefe do Poder Executivo, eles serão alcançados pelas restrições? A resposta deve ser positiva. Considerando que os Chefes dos denominados “Poderes” são eleitos, quer de modo direto, quer pelos seus pares, a exceção do inciso II do § 1º do art. 20 da LC nº 101/2000, retira do seu alcance os substitutos eventuais, que não foram eleitos para o cargo, a exemplo do que se verifica com os substitutos eventuais do Presidente e do Vice-Presidente da República, referidos no art. 80 da Constituição de 1988.
39. Ainda é importante ressaltar que o inciso IV do art. 8º da LC nº 173/2020 não estabelece qualquer vedação à cessão de servidores ao Ministério Público, com ônus para o órgão de origem ou mediante ressarcimento. Assim ocorre, em primeiro lugar, porque essa cessão não pode ser equiparada à admissão de pessoal, já que remanesce o vínculo funcional com o órgão origem. Além disso, mesmo que a cessão se estenda por mais de um exercício, tendo caráter continuado, não caracteriza uma despesa obrigatória, já que não imposta por ato normativo, o que atrairia a vedação prevista no inciso VII do art. 8º.

III.VII.V. Criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de cunho indenizatório, à exceção do cumprimento de sentença judicial transitada em julgado.

40. Trata-se de desdobramento do inciso I do art. 8º. A relação entre ambos é de acessório e principal.

41. Essa vedação, nos termos do § 5º do art. 8º, não se aplica a medidas de combate à calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.

III.VII.VI. Criar despesa obrigatória de caráter continuado.

42. Despesa obrigatória de caráter continuado, em conformidade com o art. 8º, § 2º, I, da LC nº 173/2020 e do art. 17, caput, da LC nº 101/2000, é a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que estabeleçam a obrigação legal de sua execução por período superior a dois exercícios financeiros.

43. Essa vedação, nos termos do § 1º do art. 8º, não se aplica a medidas de combate à calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração. De acordo com o § 2º do mesmo preceito, também não se aplica se houver prévia compensação mediante aumento de receita ou redução de despesa.

III.VII.VII. Reajustar despesa obrigatória em patamar superior ao IPCA, ressalvando-se que a possibilidade de reajuste não alcança as despesas com pessoal, disciplinadas que são por outros incisos do preceito.

47. A vedação, nos termos do § 1º do art. 8º, não se aplica a medidas de combate à calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19, cuja vigência e efeitos não ultrapassem a sua duração.

III.VII.VIII. A contagem do período compreendido entre a publicação da Lei Complementar nº 173/2020 e 31 de dezembro de 2021 como período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, aposentadoria, e quaisquer outros fins.

48. O art. 8º, IX, estabelece vedações à integração de direitos estatutários que se aperfeiçoam com o só decurso do tempo. Um dos direitos ali mencionados, a licença-prêmio, não têm qualquer correlação com o alegado aumento de despesa. No âmbito da União, tem-se a “licença para capacitação”. O objetivo, puro e simples, é o de impor um sacrifício, restringindo o direito estatutário por puro capricho, já que a fruição de licenças dessa natureza não resulta na contratação de pessoal, não gerando, portanto, aumento de despesa. Esse ato emulativo, à evidência, tem vítima única, a licença-prêmio, não se estendendo às demais licenças previstas em lei, que não acarretam aumento de despesa,. Todos os demais atos afetos à rotina administrativa, influenciados pelo decurso do tempo, a exemplo da declaração de estabilidade ou de vitaliciedade, têm o seu trâmite e higidez preservados, o que, inclusive, decorre do disposto na última parte do inciso IX do art. 8º.

49. Ainda no plano das exclusões, há menção expressa à contagem do tempo de serviço para fins de aposentadoria. Aliás, sequer poderia ser diferente, pois estamos perante direito social de estatura constitucional. Por identidade de razões, apesar da ausência de referência ao abono de permanência, também ele pode ser regularmente integralizado no curso do período a que se refere o inciso IX do art. 8º. Assim ocorre, em primeiro lugar, por ter estatura constitucional, estando previsto no art. 40, § 19, da Constituição de 1988, que transfere a cada ente federativo que conte com regime próprio de previdência social a possibilidade de instituí-lo, ou não. Como derivação dessa disciplina constitucional, não poderia a União, manu militari, absorver a integralidade dessa competência legislativa. Por fim, o direito ao abono de permanência surge justamente a partir do preenchimento dos requisitos exigidos para a aposentadoria, sendo este último direito social expressamente excepcionado.

50. No que diz respeito aos direitos estatutários que acarretam o aumento de despesa com pessoal a partir do fluir do tempo, a configuração desse aumento, nos termos do art. 8º, IX, deve ser identificado desconsiderados acréscimos de outra natureza, reduções ou possíveis compensações.

51. Considerando os temos da parte inicial do inciso IX do art. 8º, que veda a própria contagem do lapso temporal ali referido para os fins que indica, ter-se-á a perda do direito, não a sua postergação para fruição posterior. Não é possível, portanto, que o período aquisitivo de qualquer dos direitos estatutários ali previstos seja integralizado após a publicação da LC nº 173/2020, até 31 de dezembro de 2021. Há pura e simples suspensão durante todo esse lapso temporal, não podendo ser computado um dia sequer desse período para a integralização do direito. Por outro lado, direitos cujos requisitos já tenham sido preenchidos em momento anterior, ainda que não tenham sido implementados, são alcançados pela garantia do direito adquirido. Nesse sentido: STF, 2ª Turma, RE nº 392.559/RS, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 07/02/2006, DJ de 03/03/2006; e Pleno, ADI nº 3.104/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, j. em 26/09/2007, DJ de 09/11/2007. Não há óbice, igualmente, para a averbação de tempo de serviço anterior ao período de suspensão, ainda que a decisão administrativa seja proferida no seu curso.

52. No que diz respeito ao periodo a ser considerado para fins de avaliação do aumento, ou não, da despesa de pessoal por conta da possível prática dos atos vedados no inciso IX do art. 8º da LC nº 173/2020, também aqui, a exemplo do que foi dito em relação ao inciso IV do art. 8º, duas possibilidades se abrem ao intérprete: considerar a integralidade do exercício financeiro ou aplicar analogicamente a avaliação quadrimestral de que trata o art. 22 da LC nº 101/2000. O complicador da primeira opção é o de não oferecer qualquer sistemática de restabelecimento da normalidade caso o excesso seja detectado. Considerando que tanto a LC nº 173/2020 como a LC nº 101/2000 tratam de finanças públicas e encontram a sua gênese no art. 163, I, da Constituição de 1988, a opção mais adequada parece ser, também aqui, o estabelecimento de um diálogo entre elas.

53. Em razão dessa vedação, fica evidente que a progressão funcional na carreira dos servidores da Instituição, que leve em consideração apenas o critério de antiguidade, não mais será automática. Por outro lado, caso seja agregado outro fator à antiguidade, a exemplo da frequência a cursos de aperfeiçoamento ou das avaliações de desempenho, o óbice será removido. No que diz respeito aos membros do Ministério Público, como a antiguidade é apenas o critério utilizado no concurso de promoção, não resultando, por si só, em aumento de despesa, não haverá óbice à realização desses concursos.

III.VII.IX. O § 3º do art. 8º permitiu que, mesmo após 31 de dezembro de 2021, a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual, de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo (CR/1988, art. 165), contenham dispositivos e autorizações que versem sobre as vedações previstas no art. 8º da LC nº 173/2020, sendo vedada qualquer cláusula de retroatividade.

54. De acordo com o § 3º do art. 8º, “a lei de diretrizes orçamentárias e a lei orçamentária anual poderão conter dispositivos e autorizações que versem sobre as vedações previstas neste artigo”. Esse preceito permitiu que as vedações temporalmente delimitadas, estatuídas no art. 8º, pudessem continuar a viger mesmo após o período referido no caput desse preceito, bastando que fossem previstas nas leis orçamentárias. Para que não haja dúvidas em relação ao objetivo almejado, a parte final do preceito determinou que os respectivos efeitos “somente sejam implementados após o fim do prazo fixado, sendo vedada qualquer cláusula de retroatividade”. Essa natureza prospectiva permite que as vedações sejam estendidas para além do período de pandemia.

III.VII.X. Da inconstitucionalidade do art. 8º.

55. Compreendidos os lineamentos básicos do art. 8º da LC nº 173/2020 e o seu potencial alcance, cumpre tecer algumas considerações a respeito de sua inconstitucionalidade. Esse vício, aliás, mostra-se tão acentuado que tangencia a linha imaginária do inusitado.

56. Observa-se, inicialmente, que passou despercebido aos mentores intelectuais da Lei Complementar nº 173/2020, a qual se arvorou no papel de criadora de um regime jurídico nacional, que a ordem constitucional consagra inúmeras situações em que a iniciativa legislativa nessa seara é privativa. É o que se verifica, por exemplo, em relação (a) aos servidores públicos federais, estaduais e municipais em geral (CR/1988, art. 61, § 1º, II, c c.c. arts. 25, caput e 29, caput), lembrando, em relação aos primeiros, que o projeto que deu origem à LC nº 173/2020 é de iniciativa parlamentar (PLC nº 39/2020, de autoria do Senador Antônio Anastasia); (b) aos integrantes do Poder Judiciário (CR/1988, arts. 93 e 96); (c) aos membros do Ministério Público (CR/1988, arts. 127, § 2º e 128, § 5º); e (d) aos membros da Defensoria Pública (CR/1988, art. 134, § 4º). É evidente, portanto, a inconstitucionalidade formal.

57. No plano material, merece destaque que o art. 8º da LC nº 173/2020, embora tenha um teor bem semelhante ao do art. 8º da Lei Complementar nº 159/2017, que instituiu o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal, produz efeitos substancialmente distintos, além de ter muito maior amplitude, falando por si o seu inciso IX.
58. O art. 8º da LC nº 173/2020 alcança não só a União, o que seria natural, considerando ser ela a autora desse diploma normativo, como também a generalidade dos entes federativos cujo Poder Legislativo decretou a calamidade pública decorrente da pandemia de Covid-19. A anormalidade está justamente neste último aspecto, já que estamos perante comandos normativos afetos às atividades administrativa e legislativa, com realce para a gestão de pessoal, o que fere de morte a autonomia política desses entes (CR/1988, arts. 1º, caput e 18, caput), sem olvidar a autonomia das próprias estruturas estatais de poder e instituições constitucionalmente autônomas, a exemplo do Ministério Público. O paralelo com o art. 8º da LC nº 159/2017 é útil por uma razão muito simples: neste caso, as restrições incidem caso o ente federativo decida aderir ao Regime de Recuperação Fiscal. Em outras palavras, a decisão, em primeiro e último plano é sua, não sendo possível que a adesão e as restrições que traz consigo lhe sejam impostas. O mesmo vício, aliás, alcança o disposto no art. 10 da LC nº 173/2020, que determina a suspensão do prazo de validade dos concursos públicos, com abstração do juízo de valor da estrutura de poder que o organizou.

59. Ainda sob a ótica material, o art. 8º escolheu, entre todos os setores econômicos e categorias produtivas, um responsável pelo desequilíbrio das contas públicas que advirá da pandemia de Covid-19. Trata-se do servidor público, que deve continuar a bem exercer suas funções, observando estritamente os princípios regentes da atividade estatal, com realce para a eficiência, e ter os seus direitos estatutários restringidos. Uma escolha arbitrária como essa, desacompanhada de qualquer dado empírico que possa justificar o tratamento diferenciado, fere de morte a isonomia (CR/1988, art. 5º, caput).

60. O inciso I do art. 8º, ao vedar, de modo genérico e peremptório, a concessão, a qualquer título, de “vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração”, fez tábula rasa ao direito à revisão geral anual, de iniciativa privativa do Chefe do Poder Executivo, conforme copiosa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (Pleno, ADI nº 2.481/RS, rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 19/12/2001, DJ de 22/03/2002; e ADI nº 2.492-2, rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 19/12/2001, DJ de 06/02/2002), expressamente assegurada pela ordem constitucional (CR/1988, 37, X).

61. Especificamente em relação ao inciso IX do art. 8º, os vícios de inconstitucionalidade são ainda mais acentuados. De acordo com esse preceito, é vedado contar o período compreendido entre a publicação da LC nº 173/2020 e 31 de dezembro de 2021 como “de período aquisitivo necessário exclusivamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de serviço...)”. Além do vício de iniciativa e da afronta à isonomia, que alcançam a integralidade do preceito, chega a ser enigmático identificar a razão de ser vedada a contagem do referido tempo para fins de aquisição da “licença-prêmio”. Como esse direito, assegurado em inúmeros regimes jurídicos, não gera aumento de despesa, qual é a justificativa para uma restrição dessa natureza, violência gratuita que somente ombreia com a insensatez de sua existência? Trata-se, aqui, de afronta manifesta à proporcionalidade, ínsita na concepção de Estado de Direito (CR/1988, art. 1º, caput), e à razoabilidade, inerente ao princípio do devido processo legal em sua dimensão substantiva (CR/1988, art. 5º, LIV). Assim se afirma pela singela razão de a restrição imposta à esfera jurídica individual não ser adequada ao fim expressamente almejado, qual seja, o de evitar o aumento da despesa pública. Afinal, despesa não há.

62. Além dos vícios formais e materiais que acometem o art. 8º da LC nº 173/2020, o seu § 3º abriu as portas para a sua perpetuação ao permitir que as vedações continuem a ser previstas, após o fim da pandemia, na lei de diretrizes orçamentárias e na lei orçamentárias de cada ente federativo. Em um lance de tinta, matérias inerentes aos regimes jurídicos de diversas categorias, muitos deles veiculados em leis nacionais, foram transferidas para a discussão orçamentária. Na medida em que a funcionalidade do § 3º do art. 8º é a de protrair no tempo as vedações veiculadas nesse preceito, os vícios anteriormente referidos também o alcançam. Não bastasse isto, transfere para a lei orçamentária matéria estranha à previsão da receita e à fixação da receita, sendo, também por isso, materialmente inconstitucional (CR/1988, art. 165, § 8º).

III.VIII. Do art. 9º.
63. O art. 9º da LC nº 173/2020 é direcionado aos Municípios, suspendendo, na forma do regulamento, os pagamentos de refinanciamentos de suas dívidas com a Previdência Social, com vencimento entre 1º de março e 31 de dezembro de 2020. A mesma suspensão, nos termos do § 2º desse preceito, é extensiva à contribuição previdenciária patronal devida aos respectivos regimes próprios.

III.IX. Do art. 10.

64. O art. 10 determina ainda que os prazos de validade dos concursos públicos homologados até 20 de março de 2020 ficam suspensos até 31 de dezembro de 2020; voltando a fluir a partir do término do período de calamidade pública (§ 2º). Essa suspensão tem a sua ratio vinculada tanto à vedação de preenchimento dos cargos públicos fora das hipóteses do art. 8º, como à possível ausência de recursos disponíveis para fazer face às nomeações, isso em razão do estrangulamento da economia causado pela pandemia.

65. As dificuldades de ordem financeira, aliás podem justificar a não nomeação dos candidatos aprovados dentro do número de vagas do edital. Trata-se de exceção que pode ser invocada mesmo após a sedimentação, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, do entendimento de que “[a] aprovação do candidato no limite do número de vagas definido no Edital do concurso gera em seu favor o direito subjetivo à nomeação para o cargo” (Pleno, RE nº 598.099/MS, rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 10/08/2011, DJ de 03/10/2011).

66. É importante ressaltar que a Constituição de 1988, em seu art. 37, III, dispõe que o prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período. Apesar de estarmos perante uma situação de anormalidade, não identificamos justificativa para que esse período não seja computado no quadriênio constitucional. Vale lembrar que o prazo de validade máximo é de dois anos e a prorrogação é mera faculdade, indicativo de que o concurso público é tido como um processo seletivo a ser periodicamente renovado.

67. Exige-se, ainda, na forma do § 3º do art. 8º, a publicação, pelos organizadores dos concursos, nos veículos oficiais, da comunicação da referida suspensão. Essa exigência, por certo, aplica-se ao Ministério Público.

 

IV. Epílogo

68. As considerações realizadas são subsidiadas pelas regras de experiência e pelo potencial expansivo dos enunciados linguísticos utilizados pela LC nº 173/2020, sendo factível que as nuances da realidade tendem a descortinar novos horizontes a serem enfrentados.

69. É a análise, s.m.j.

 

Rio de Janeiro, 18 de junho de 2020.

 

Emerson Garcia
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro,
Consultor Jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça e Diretor da Revista de Direito
Consultor Jurídico da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP)
Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa
Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Education Law and Policy (Antuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e Internacionais pela Universidade de Lisboa
Professor convidado de diversas instituições de ensino
Membro da American Society of International Law e da
International Association of Prosecutors (The Hague – Holanda).
Membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).


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