No direito brasileiro, tanto a ordem constitucional como a infraconstitucional consagram de modo expresso o referencial de absoluta prioridade, que deve nortear as relações que a família, a sociedade e o Estado mantêm com certas camadas da população. O fato de a ordem jurídica assegurar essa prioridade a uma pluralidade de destinatários distintos ainda traz consigo complicadores adicionais, mais especificamente em relação à possibilidade, ou não, de ser estabelecida alguma ordem de preferência entre eles. Se a resposta a esse questionamento não assume grande complexidade quando as prioridades constitucionais são cotejadas com as infraconstitucionais, o mesmo não pode ser dito quando todas estão situadas no mesmo plano normativo. E mesmo entre aquelas, seria desinfluente a natureza dos direitos envolvidos, de modo que a prioridade constitucional do direito ao lazer, por exemplo, sempre superaria a prioridade infraconstitucional do direito à vida? O objetivo de nossas reflexões é justamente o de oferecer uma contribuição para esse debate.
Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. A base normativa da absoluta prioridade; 3. Significado da absoluta prioridade; Epílogo; Referências bibliográficas.
- Aspectos introdutórios
No direito brasileiro, tanto a ordem constitucional como a infraconstitucional consagram de modo expresso o referencial de absoluta prioridade, que deve nortear as relações que a família, a sociedade e o Estado mantêm com certas camadas da população.
O fato de a ordem jurídica assegurar essa prioridade a uma pluralidade de destinatários distintos ainda traz consigo complicadores adicionais, mais especificamente em relação à possibilidade, ou não, de ser estabelecida alguma ordem de preferência entre eles. Se a resposta a esse questionamento não assume grande complexidade quando as prioridades constitucionais são cotejadas com as infraconstitucionais, o mesmo não pode ser dito quando todas estão situadas no mesmo plano normativo. E mesmo entre aquelas, seria desinfluente a natureza dos direitos envolvidos, de modo que a prioridade constitucional do direito ao lazer, por exemplo, sempre superaria a prioridade infraconstitucional do direito à vida?
Ao atribuirmos um sentido à expressão linguística absoluta prioridade, seria possível estabelecermos uma segunda ordem de prioridades entre os seus destinatários, de modo que algum deles possa ter preferências sobre os outros em certas políticas públicas? Uma resposta a esse questionamento é simplesmente imprescindível. Afinal, se a redação originária do caput do art. 227 da Constituição de 1988 somente consagrava a absoluta prioridade para crianças e adolescentes, a Emenda Constitucional nº 65/2010 inseriu os jovens sob o mesmo manto protetor. Todos devem receber a atenção do Estado. Não há dúvidas a esse respeito. Apesar disso, seria possível estabelecer uma ordem de prioridade entre eles, considerando as distintas fases do seu desenvolvimento biológico? A resposta a esse questionamento influirá, por exemplo, na decisão pela constitucionalidade, ou não, da Lei nº 13.257/2016, que atribuiu prioridade para as políticas públicas da primeira infância.
Para a compreensão dessa temática, direcionaremos nossa breve análise ao modo como a nossa ordem jurídica contemplou a absoluta prioridade, bem como aos incidentes argumentativos a serem superados pelo intérprete para o delineamento do seu conteúdo. Por fim, será possível identificar se estamos perante uma norma que sempre terá estrutura principiológica, o que permite compressões ou expansões conforme a natureza dos bens jurídicos colidentes, ou se poderá ensejar o surgimento de posições definitivas, a exemplo do que se verifica com as regras.
- A base normativa da absoluta prioridade
A Lei nº 8.069/1990, ao veicular o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pode ser vista como um verdadeiro diploma de emancipação de nossas crianças e adolescentes. Não, obviamente, no sentido preferido pelos civilistas. Afinal, ainda não é nesse momento de sua vida que o ser humano adquire a plena capacidade jurídica para praticar os atos da vida civil. A emancipação aqui referida diz respeito ao rompimento do modo como eram vistos e tratados pela legislação. Para dizermos o mínimo, basta observar que, até então, os diplomas normativos especificamente direcionados a essa camada da população, o Decreto nº 17.943-A/1927 e, muitos anos depois, a Lei nº 6.697/1979, davam mais ênfase à situação irregular eventualmente vivenciada, bem como aos eventuais objetivos punitivos, que à necessidade de proteção integral.
A base de valores que permitiu o florescer do ECA foi fruto de longa maturação em nosso processo civilizatório, certamente tardia ao lembrarmos que ainda somos um País em via de desenvolvimento. O auge dessa maturação foi estampado na Constituição de 1988, ápice do sistema normativo e que promoveu diversos avanços nas relações do Estado com a pessoa humana, em especial com crianças e adolescentes, os quais, pela primeira vez em nossa história, foram aquinhoados com um capítulo específico, passando a ser vistos como verdadeiros titulares de direitos e deveres.
A ordem constitucional, em seu art. 227, a exemplo do que fez em relação à generalidade dos brasileiros e dos estrangeiros residentes no território nacional, assegurou a crianças e adolescentes os direitos mais basilares à espécie humana, além de direitos específicos, condizentes com o seu estágio de desenvolvimento. Apesar desses comandos, que bem sintetizam a plasticidade de nossa ordem jurídica e o abismo que há entre ela e a realidade, não sendo exagero identificar a existência de uma certa “insinceridade normativa”, um aspecto chama particular atenção. Trata-se da expressão absoluta prioridade, [1] objeto de nossas reflexões e utilizada no caput do art. 227 para indicar a forma como a família, a sociedade e o Estado deveriam assegurar à criança e ao adolescente “o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
O ECA, editado pouco menos de dois anos após a promulgação da Constituição de 1988, além de reconhecer a absoluta prioridade em seu 4º, ainda detalhou o seu raio de abrangência no parágrafo único desse preceito, compreendendo nessa garantia: “a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude”. Também fez menção a ela no art. 100, parágrafo único, II.
A análise das normas legais denota que à absoluta prioridade foi atribuída uma amplitude simplesmente desconcertante. Foi enunciada, em primeiro lugar, a preferência no recebimento de proteção e socorro em quaisquer circunstâncias, ações que assumem contornos preventivos e corretivos em relação à miríade de direitos a que crianças e adolescents fazem jus. Também foi assegurada a preferência nos serviços públicos ou de relevância pública e nas políticas sociais públicas, nítida referência aos direitos prestacionais do art. 6º da Constituição de 1988, bem como na destinação de recursos públicos.
Apesar da previsão normativa, é factível que a prioriedade preconizada no texto constitucional ainda está longe de integrar a realidade da Administração Pública. Esse aspecto torna-se bem perceptível ao lançarmos nossos olhos sobre alguns serviços específicos ofertados pelo Estado, a exemplo da saúde e da educação, que estão longe de alcançar padrões mínimos de qualidade. O quadro se torna ainda mais dramático ao constatarmos que a abosluta prioridade preconizada pela ordem constitucional parece não ter sido bem compreendida pelo Poder Legislativo.
A Emenda Constitucional nº 65/2010 inseriu o significante jovem no caput do art. 227, o que automaticamente o tornou destinatário da absoluta prioridade e dos direitos ali previstos. Além disso, também inseriu um § 8º nesse preceito, dispondo, em seu inciso I, que a lei estabelecerá o estatuto da juventude, destinado a regular os direitos dos jovens. Duas conclusões podem ser desde logo alcançadas.
A primeira conclusão é a de que a reforma constitucional, ao menos no plano semântico, nivelou a absoluta prioridade de crianças, adolescentes e jovens, embora seja inegável que os dois primeiros, pela maior debilidade que ostentam e por ainda estarem no limiar do processo formativo de sua individualidade, carecem de uma atenção diferenciada do Estado, isso quando cotejados com indivíduos de idade mais avançada. Aliás, não tardou para que isso fosse percebido.
A Lei nº 13.257/2016, que dispôs sobre as políticas públicas para a primeira infância, estatuiu, em seu art. 3º, que a absoluta prioridade dos direitos da criança, do adolescente e do jovem implica o dever de o Estado estabelecer políticas, planos, programas e serviços que atendam às especificidades das crianças que se encontram nos 6 primeiros anos de vida, visando a garantir o seu desenvolvimento integral. É evidente, aliás, que a proteção diferenciada do ser humano nessa faixa etária é simplesmente essencial. Esse diploma normativo também acresceu um parágrafo segundo ao art. 13 do ECA, para determinar que as estruturas estatais de poder confiram máxima prioridade ao atendimento de crianças nessa faixa etária, com suspeita ou confirmação de violência de qualquer natureza.
O Supremo Tribunal Federal já teve oportunidade de invocar a absoluta prioridade da criança para vedar a dispensa arbitrária ou sem justa causa da gestante, a partir da existência da gravidez, independente do seu conhecimento pelo empregador; [2] e para substituir a prisão preventiva pela domiciliar de gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes. [3] Neste último caso, o benefício não foi assegurado às mães dos adolescentes e jovens, embora sejam igualmente alcançados pela absoluta prioridade constitucional.
A segunda conclusão decorre da assertiva de que uma lei específica regularia os direitos dos jovens, o que trouxe consigo a indefectível sensação de que os direitos que lhes são assegurados pela ordem constitucional assumiriam contornos meramente programáticos. Não se ignora, é certo, que também os direitos de crianças e adolescentes devem ser regulamentados pela legislação infraconstitucional, o que não obstou que recebessem, em algumas ocasiões, maior detalhamento da própria ordem constitucional, tornando possível a sua imediata exigibilidade, a exemplo do “direito público subjetivo” à educação básica, consagrado no § 1º do art. 208, com o relevante acréscimo de ser este o único momento em que a vistosa expressão foi empregada pela Constituição de 1988, e isto no sentido próprio do direito privado.
Em alguns poucos casos, a ordem constitucional avançou no detalhamento dos direitos, e, em sua grande maioria, a regulamentação foi estabelecida pelo ECA. Apesar disso, em muitas ocasisões, os direitos enunciados no caput do art. 227 tiveram a sua eficácia integrada pela cláusula da dignidade da pessoa humana, preconizada no caput do art. 1º e igualmente contemplada no próprio art. 227 da Constituição de 1988. Com isso, foi possível a sua exigibildiade imediata.
A partir dessas constatações de ordem preliminary, observa-se que a Lei nº 12.852/2013 veiculou o Estatuto da Juventude (EJ) e classificou como jovens as pessoas com idade entre 15 e 29 anos, mas apressou-se em excluir do seu alcance os adolescentes, aos quais seria aplicado o ECA. Com isso, somente sendo alcançados pelo EJ naquilo que não conflitasse com as normas de proteção integral. Contrariamente ao que fez o ECA, o EJ não dedicou uma linha sequer à forma como a absoluta prioridade dessa camada da população seria assegurada, possivelmente na ingênua suposição de que a omissão seria a solução do problema. Afinal, o que seria de uma ordem constitucional (no Brasil, é importante frisar) sem a lei?
Talvez impressionado com a plasticidade do enunciado linguístico absoluta prioridade, o legislador, em momento anterior, já o empregara com riqueza de detalhes na Lei nº 10.741/2003, que veiculou o Estatuto do Idoso. De acordo com o art. 3º, caput, desse diploma normativo, são assegurados aos idosos, “com absoluta prioridade”, os mesmos direitos que o caput do art. 227 asssegurava, à época, às crianças e adolescentes. Mais interessante ainda foi o alcance atribuído a essa prioridade pelo § 1º do art. 3º, verbis: “I – atendimento preferencial imediato e individualizado junto aos órgãos públicos e privados prestadores de serviços à população; II – preferência na formulação e na execução de políticas sociais públicas específicas; III – destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso; IV – viabilização de formas alternativas de participação, ocupação e convívio do idoso com as demais gerações;V – priorização do atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento asilar, exceto dos que não a possuam ou careçam de condições de manutenção da própria sobrevivência; VI – capacitação e reciclagem dos recursos humanos nas áreas de geriatria e gerontologia e na prestação de serviços aos idosos; VII – estabelecimento de mecanismos que favoreçam a divulgação de informações de caráter educativo sobre os aspectos biopsicossociais de envelhecimento; VIII – garantia de acesso à rede de serviços de saúde e de assistência social locais; IX – prioridade no recebimento da restituição do Imposto de Renda”. Não é preciso ressaltar a similitude dos incisos I a III do art. 3º com as alíneas b a d do parágrafo único do art. 4º do ECA.
Como nada é tão ruim que não possa piorar, ainda nos deparamos com a concentração de competências em um mesmo órgão jurisdicional, a exemplo do que se verifica no Rio de Janeiro, para apreciar as causas afetas, de um lado, a crianças e adolescentes, e, do outro, aos idosos, com base, respectivamente, nas Leis nº 8.069/1990 e 10.741/2003. Ora, como é possível compatibilizar a absoluta prioridade de ambos? A resposta é simples: não é. Na medida em que a prioridade dos idosos é atribuída pela lei, ela não poderia afastar, em linha de princípio, a prioridade constitucional de crianças e adolescentes, resultando, dessa espécie de organização judiciária, uma afronta expressa ao art. 71, caput, da Lei nº 10.741/2003, que assegura “prioridade na tramitação dos processos e procedimentos e na execução dos atos e diligências judiciais em que figure como parte ou interveniente pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos, em qualquer instância”.
Ainda que o quantitativo de idosos esteja passando por um exponencial crescimento, tendendo a superar, na década de trinta do século XXI, o quantitativo de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos, a absoluta prioridade, até que sobrevenha uma reforma constitucional, continuará a ser dos últimos [4].
Portanto, o que temos na fecunda realidade brasileira é (a) a previsão constitucional de absoluta prioridade para crianças, adolescentes e jovens; (b) a previsão exclusivamente legal de absoluta prioridade para os idosos; e (c) o detalhamento legal dessa prioridade apenas para crianças, adolescentes e idosos, não para jovens.
À luz desse quadro, observa-se, inicialmente, que a absoluta prioridade a que se refere o caput do art. 227 não carecia da regulamentação promovida pelo parágrafo único do art. 4º do ECA para que se tornasse eficaz e pudesse alcançar a realidade. Essa conclusão é facilmente obtida a partir da análise de como a matéria foi tratada. Observa-se que o comando constitucional dispõe sobre a necessidade de a família, a sociedade e o Estado assegurarem, a crianças, adolescentes e jovens, diversos direitos; a maioria desses direitos têm natureza prestacional e é extensiva à generalidade das pessoas sujeitas às leis brasileiras; apesar de todos terem esses direitos, a sua implementação deve se dar com absoluta prioridade em relação a certas pessoas. Para que essa prioridade alcance a realidade, soa evidente que crianças, adolescentes e jovens devem ter primazia nas políticas, serviços e nos recursos públicos.
O parágrafo único do art. 4º do ECA apresenta uma funcionalidade nitidamente pedagógica para as maiorias ocasionais, isso em razão do risco, mais que justificável, é importante frisar, de que essas maiorias não sejam capazes de deduzir no que consistiria uma absoluta prioridade ou desejem simplesmente ignorá-la. Esse “esclarecimento legal” resulta em algo parecido com a menção a um “círculo absolutamente redondo”. Afinal, se no plano semântico o significante prioridade aponta para o que está em primeiro lugar em importância e necessidade, a absoluta prioridadeindicaria uma primazia que não pode ser afastada em hipótese alguma, por mais nobre que seja a justificativa, já que absoluto é o que não admite condicionamentos ou limites.
Se o detalhamento da absoluta prioridade pelo ECA não era essencial, a omissão desse detalhamento no âmbito do EJ também não tem o condão de retirar do seu alcance os jovens.
A partir dessa visão básica da disciplina normativa da absoluta prioridade, cumpre avançar nos incidentes argumentativos e decisórios a serem superados pelo intérprete para a sua projeção na realidade. Com isso, será possível identificar o significado que lhe deve ser atribuído e, como antecipamos, a possibilidade de, sob o prisma constitucional, termos uma ordem de prioridade entre crianças, adolescentes e jovens. Ou ainda, sobre a possibilidade de ouros direitos, pela sua relevância para a própria continuidade da espécie humana, antecederem a implementação de direitos afetos àquela camada da população que não ostentem relevância similar, a exemplo da já referida tensão dialética entre vida e lazer.
- Significado da absoluta prioridade
O texto normativo é editado para se protrair no tempo, enquanto a norma que dele se origina pode passar por sucessivas mutações com o passar do tempo. Isso ocorre justamente porque a norma é o resultado de um processo intelectivo conduzido pelo intérprete, que promove a interação entre texto e realidade, desenvolvendo, nesse percurso, uma atividade argumentativa e decisória.
Após individualizar a norma potencialmente incidente no caso concreto, o intérprete desenvolverá a mesma atividade em relação a outras normas que também podem desempenhar esse papel. Identificadas as normas passíveis de serem utilizadas, o intérprete deve resolver o respectivo conflito, de modo a alcançar a norma de decisão. Texto normativo, norma jurídica e norma de decisão ocupam planos independentes e sequenciais entre si.
Para transitar do texto normativo para a norma jurídica, o intérprete terá que proferir uma série de decisões, visando a atribuir um significado ao significante interpretado. Assim ocorre porque o intérprete deve resolver as conflitualidades intrínsecas que se apresentem, as quais nada mais são que a oposição de grandezas argumentativamente relevantes, identificadas no curso do processo de interpretação e que podem influir na identificação de uma pluralidade de significados reconduzíveis ao mesmo enunciado linguístico. Essas grandezas surgem a partir da interação entre texto e contexto e retratam as peculiaridades da linguagem, os valores concorrentes, os fins que devem ser alcançados pela futura norma e o modo de operacionalizá-la na realidade. Após a conclusão dessa atividade interpretativa, será possível identificar a natureza da norma jurídica individualizada pelo intérprete, se regra ou princípio.
Caso o intérprete individualize uma única norma jurídica, ela se identificará com a norma de decisão que solucionará o caso concreto. Quando se depare com a possibilidade de duas ou mais normas jurídicas, obtidas a partir da interpretação de uma pluralidade de enunciados linguísticos, incidirem no caso concreto, será necessário resolver uma situação de conflitualidade extrínseca (rectius: antinomia). Somente após resolver o conflito entre normas será alcançada a norma de decisão.
Com os olhos voltados ao significante absoluta prioridade, previsto no art. 227, caput, da Constituição de 1988 e parcialmente reproduzido no art. 4º, caput, do ECA, observa-se que ele qualifica a forma como diversos direitos, a maioria de natureza prestacional, deve ser ofertada, pela família, pela sociedade e pelo Estado, a crianças, adolescentes e jovens. No plano da análise sintática, estamos perante uma locução adverbial de modo, indicando que algo deve ser feito com primazia, o que estabelece uma posição de preferência sobre todos os outros que podem fruir esses direitos. Como essa preferência é absoluta, ela não pode sofrer condicionantes ou limitações de qualquer natureza, o que seria um complicador para se atribuir natureza principiológica a esse comando. Afinal, os princípios são caracterizados por ensejarem o surgimento de posições jurídicas prima facie, não de posições definitivas. Portanto, devem ser compatibilizados com outros princípios do sistema, podendo expandir-se ou contrair-se conforme as peculiaridades do caso concreto. O referido complicador, no entanto, é mais aparente que real.
A exemplo do que se verifica no plano linguístico, em que não há maior espaço argumentativo para se atribuir significado diverso à referida locução adverbial, no plano axiológico ocorre o mesmo. No atual estágio civilizatório da sociedade internacional, em que se multiplicam as convenções visando à proteção dessa camada da população, ao que se soma o modo como a sociedade brasileira e os poderes constituídos têm compreendido a sua relevância para o desenvolvimento nacional, não parecem existir valores contrapostos que almejem deslocar essa hegemonia para outros destinatários. Ainda que os idosos tenham merecido a devida atenção, o fato de a ordem constitucional, em seus arts. 229 e 230, ter omitido qualquer referência à prioridade no seu atendimento, o que, como vimos, somente veio a ocorrer no plano infraconstitucional, não compromete o reconhecimento da importância de crianças, adolescentes e jovens como destinatários de políticas, serviços e recursos públicos, não só para a higidez de sua formação pessoal como para a garantia do futuro do País.
No plano teleológico, que aponta para os fins a serem alcançados pela norma que o intérprete pretende individualizar, observa-se que a locução absoluta prioridade, além de estar associada a destinatários específicos, instrumentaliza cada um dos direitos referidos no art. 227. Esse aspecto exige atenção redobrada. Assim ocorre porque o preceito constitucional enuncia direitos bem variados, alguns relacionados à preservação da própria (a) existência de crianças, adolescentes e jovens, a exemplo da vida, da saúde e da alimentação; outros associados ao (b) equilibrado desenvolvimento da vida, como a dignidade, o respeito, a liberdade, a convivência familiar e comunitária e a ausência de influências externas que os aviltem; e ainda há aqueles relacionados ao (c) pleno desenvolvimento da vida e da personalidade individual, a exemplo da educação, do lazer, da profissionalização e da cultura.
Caso esses direitos, para os fins da absoluta prioridade, sejam vistos de maneira monolítica, de modo que formem uma unidade existencial, ter-se-ia de concluir, por via reflexa, que o restante da população somente poderia ter um desses direitos reconhecidos caso crianças, adolescentes e jovens os tivessem fruído em momento anterior. Ocorre que esse raciocínio poderia conduzir a conclusões inusitadas, a exemplo da negação do direito à existência de um adulto, deixando de oferecer-lhe saúde e alimentação, direitos sociais assegurados a todos pelo art. 6º da Constituição de 1988 e indiscutivelmente alcançados pela cláusula da dignidade da pessoa humana, amparada pelo art. 1º, III, pelo só fato de crianças, adolescentes e jovens não estarem usufruindo do direito ao lazer. Para que conclusões dessa natureza sejam evitadas, parece adequado visualizar a absoluta prioridade recorrendo à propriedade matemática da distributividade.
Se a absoluta prioridade for retratada pela variável x e cada direito, sequencialmente, pelas variáveis I, II, III, IVetc., essa propriedade nos permite alcançar x.I, x.II, x.III, x.IV etc. Com isso, x.I reflete um direito amparado pela absoluta prioridade, enquanto I reflete o mesmo direito sem essa qualificação, o que confere àquele prioridade sobre este. Para que possamos comparar direitos distintos, sob o prisma da generalidade das pessoas de um lado e, do outro, de crianças, adolescentes e jovens, teremos que compreendê-los ao menos sob a ótica de um dos grupos acima referidos, vale dizer, (a), (b) e (c). Essa compartimentação faz-se necessária principalmente em razão das dificuldades econômicas enfrentadas para que os inúmeros direitos de estatura constitucional alcancem níveis mínimos de efetividade.
O fim a ser alcançado pela absoluta prioridade não é o de sedimentar o absurdo, mas o de impor que, na escolha entre direitos de idêntica ou de similar natureza, afetos a adultos, designativo que utilizamos à falta de outro melhor, e crianças, adolescentes e jovens, estes últimos tenham sempre preferência. E, entre os adultos, os idosos terão primazia, conforme dispõe o art. 3º da Lei nº 10.741/2003. A não ser assim, correr-se-á o risco de restar aviltado um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, a preservação da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III).
Por razões similares, também deve ser estabelecido um escalonamento entre as absolutas prioridades de crianças, adolescentes e jovens. Isto decorre da constatação de que o fim almejado é o de conferir-lhes uma proteção integral, de modo a assegurar a sua existência e o pleno e saudável desenvolvimento de sua vida. Esses objetivos serão alcançados a partir das necessidades afetas a cada uma dessas classes, as quais tendem a apresentar variações conforme as fases do desenvolvimento biológico do ser humano. À guisa de ilustração, podemos pensar no direito à saúde. Nesse caso, sob uma perspectiva preventiva, não obviamente sob a ótica do tratamento de graves patologias já estabelecidas, poderíamos afirmar que as necessidades de uma criança tem o nível 3, as de um adolescente o nível 2 e as de um jovem o nível 1. Portanto, é plenamente defensável que as políticas públicas da área sejam prioritariamente direcionadas a essas classes em ordem decrescente, o que nos permite afirmar que a Lei nº 13.257/2016, ao atribuir primazia para as políticas públicas da primeira infância, é plenamente compatível com a Constituição da República. O mesmo raciocínio há de ser seguido em relação à generalidade dos direitos, evitando a realização de escolhas arbitrárias e sem lastro constitucional.
Após constatarmos que a absoluta prioridade deve ser compreendida de modo agregado a cada direito reconhecido à respectiva camada da população, pois uma locução adverbial não traz consigo, sozinha, a completude de um significado normativo, será preciso avançar e identificar como a respectiva norma se tornará operativa na realidade. Tratando-se dos clássicos direitos de defesa, que asseguram ao indivíduo uma esfera jurídica imune à intervenção estatal, não há maiores dúvidas de que estamos perante direitos subjetivos, o que aponta para a sua imediata exigibilidade. No que diz respeito aos direitos prestacionais, em rigor lógico, somente darão ensejo ao surgimento de verdadeiros direitos subjetivos, exigíveis, portanto, caso tenham os seus lineamentos básicos traçados pela ordem jurídica, constitucional ou infraconstitucional. Do contrário, tendem a assumir contornos de diretrizes políticas, já presentes na elaboração das políticas públicas nessa seara, sendo enquadradas na categoria das normas programáticas, que podem ser divididas emnormas de programação final e condicionada. Como dissemos, é perfeitamente defensável a tese de que normas programáticas, consagradores de “direitos” não exigíveis, podem ter a sua eficácia integrada pela cláusula da dignidade da pessoa humana, possibilidade robustecida ao lembrarmos que estamos perante uma situação de absoluta prioridade.
Epílogo
Ao compreendermos que a absoluta prioridade deve ser analisada na perspectiva de cada direito de per se, não de modo isolado, já que uma locução adverbial, desacompanhada do respectivo substantivo, não poderá veicular sentidos normativos, podemos concluir que a sua eficácia (rectius: do direito ao qual a absoluta prioridade está vinculada) pode se expandir ou retrair conforme os direitos concorrentes, quer sejam titularizados, ou não, por crianças, adolescentes e jovens.
No cotejo entre direitos de idêntica ou similar natureza, a primazia será de crianças, adolescentes e jovens. No interior deste grupo, ainda será preciso identificar a natureza dos respectivos direitos, considerando o vetor da proteção integral e os diferentes níveis de desenvolvimento biológico de cada uma dessas classes. Como isso, alcançaremos um escalonamento entre as necessidades a serem satisfeitas, com a consequente definição de uma escala de prioridades.
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[1] A expressão absoluta prioridade é mais incisiva que o interesse superior a que se referem diversos atos de direito internacional, a exemplo da Convenção Internacional para os Direitos da Criança e do Adolescente (art. 2º, 1), de 1989, promulgada na ordem interna pelo Decreto nº 99.710/1990, e da Declaração Universal dos Direitos da Criança e do Adolescente (Princípios II e VII), de 1959.
[2] Pleno, Tema nº 497RE nº 629.053/SP, rel. p/acórdão Min. Alexandre de Moraes, j. em 1/10/2018, DJe de 27/02/2019.
[3] 2ª Turma, HC nº 143.641/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 20/02/2018, DJe de 09/10/2018.