Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. A importância do compliance nas corporações contemporâneas; 3. A cultura corporativa enquanto resultado da transição do plano deontológico para o axiológico; Epílogo; Referências.
1. Aspectos introdutórios
As regras de experiência têm nos ensinado que as corporações devem estar vinculadas a certos padrões de atuação, colhidos nos planos deontológico e axiológico, para que possam alcançar os objetivos a que se destinam. Falamos aqui de padrões internos, teleologicamente comprometidos com a realização dos seus objetivos e que coexistem com os padrões externos. Estes últimos, como se sabe, podem ter origem em exigências impostas por outras corporações ou, o que é mais comum, no Estado de Direito (ou em mais de um) com o qual a corporação tenha relação de sujeição.
Os padrões deontológicos refletem as normas internas, que apresentam funcionalidade bem diversificada, a exemplo da disciplina orgânica, que delineia estruturas e competências, e do detalhamento das obrigações dos colaboradores, sempre considerando os objetivos a serem alcançados pela corporação. O ambiente corporativo assim delineado oferece certos standards comportamentais, os quais são responsáveis pela formação de uma base de valores que espelha a identidade ético-moral da corporação.
Apesar de pertencerem ao plano axiológico, os valores são diretamente influenciados pelo dever ser característico dos padrões deontológicos. Assim ocorre porque as normas, por serem impositivas, tendem a direcionar e a estimular a repetição de condutas que resultarão na formação de valores identitários. A longa repetitio tende a diminuir a importância da imposição e a aumentar a voluntária adesão aos comportamentos esperados. Apesar da simplicidade dessa constatação, ambientes corporativos, a exemplo de outros ambientes institucionais, como aqueles afetos à Administração Pública, não são imunes à influência dos valores inerentes ao ambiente social ou a cada indivíduo em particular.
Quando se identifica uma dissonância entre os valores envolvidos, os objetivos da corporação podem ser atrasados ou, no extremo, comprometidos. Tudo dependerá da intensidade dessa dissonância e dos instrumentos utilizados pela corporação na disseminação dos seus valores junto aos colaboradores, tarefa particularmente complexa quando esses colaboradores vivem em um ambiente social em que valores diversos estão sedimentados, praticando-os com absoluta naturalidade.
Esse quadro fica ainda mais acentuado em relação às multinacionais, que podem entrar em contato com realidades substancialmente distintas daquela subjacente ao território em que foram constituídas. A sua superação, por vezes, exigirá uma “fusão de horizontes”. Afinal, como ressaltado por Zygmunt Bauman (2011: 81), “se aquilo que cada aglomeração humana percebe como verdade é a base de sua experiência coletiva, então os horizontes que cercam seu campo de visão também são as fronteiras das verdades coletivas. Se, vindos de uma variedade de aglomerações, desejamos encontrar uma verdade comum a todos e sobre ela concordar, precisamos de uma ‘fusão de horizontes’, condição preliminar de uma síntese de experiências de histórias distintas, de um futuro comum”. A opção pela imposição, não pela fusão de horizontes, pode, no extremo, inviabilizar a própria continuidade de suas operações.
A necessidade de a corporação disseminar seus valores entre os colaboradores torna-se não só necessária como premente ao lembrarmos a possibilidade de ser responsabilizada pelos atos que pratiquem e que, de algum modo, possam beneficiá-la. É a doutrina do vicarious liability (responsabilidade indireta) - Nitish Sing e Thomas J. Bussen, 2015: 8 – muito em voga em se tratando de ilícitos que possam ser reconduzidos a uma pessoa jurídica.
Embora seja certo afirmar que a corporação deve buscar o lucro, o que interessa aos stakeholders (partes interessadas) e aos shareholders ou stockholders (acionistas) em particular, os Estados contemporâneos não permanecem indiferentes aos meios utilizados para a realização desse objetivo. Corporações que se utilizam de instrumentos ilícitos em suas atividades regulares, a exemplo da corrupção de agentes públicos, nacionais ou estrangeiros, praticam infrações e estão sujeitas às penalidades cominadas. Como os colaboradores são a longa manus das corporações, são eles que idealizam e exteriorizam o animus corrumpendi. Evitar que o façam é o desafio a ser enfrentado. Ao menos por aquelas que almejam conduzir-se em harmonia com a juridicidade, vale dizer, com os padrões externos impostos pelo Estado. Essa advertência é relevante, pois é sabido que muitas, deliberadamente, agem à margem da lei para aumentar seus lucros. Aliás, uma das razões de a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico ter capitaneado a celebração da Convenção Internacional de Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros[1], de 1997, reside no fato de os Países desenvolvidos terem percebido um aumento exponencial do custo final dos seus produtos em razão dos atos de corrupção rotineiramente praticados (e estimulados por muitos governos), para o aumento das exportações. A busca da pureza relacional, de um honestus viveri, se existiu, foi mais simbólica que real.
Sensíveis à importância da disseminação de sua identidade, as corporações têm desenvolvido mecanismos que buscam delinear a deontologia e a axiologia internas, difundi-las, fiscalizar a sua observância, bem como prevenir e reprimir a sua inobservância, responsabilizando os colaboradores que deles se distanciem e realizando as devidas comunicações às autoridades competentes. Esses mecanismos têm sido incluídos sob a epígrafe mais ampla do compliance.
O objetivo de nossas breves reflexões é o de identificar, inicialmente, a importância assumida pelo compliance nas corporações contemporâneas, considerando a sua influência na mitigação ou, a depender do sistema, no próprio afastamento de possíveis punições decorrentes de rupturas da juridicidade em sua atuação na ordem econômica. Ato contínuo, analisaremos o processo formativo dos valores, inclusive daqueles sedimentados a partir dos programas de compliance, e de sua influência no surgimento de uma verdadeira cultura corporativa.
2. A importância do compliance nas corporações contemporâneas
A existência de um sistema corporativo interno que busca assegurar a aderência dos colaboradores a padrões deontológicos, definidos em um código de conduta, e a padrões axiológicos, formados a partir dos valores que se originam dessas imposições, exige que sejam estabelecidas ações de disseminação, controle, prevenção e repressão, sempre permeadas por um contínuo processo de reavaliação.
No direito norte-americano, a United States Sentencing Commission (USSC) estimulou a adoção de programas dessa natureza com a edição, em 1991, do Federal Sentencing Guidelines for Organizations (FSGO), cujos objetivos centrais eram a aplicação de sanções justas e a dissuasão da prática de ilícitos. O estímulo mencionado decorria da mitigação das penalidades, especialmente multas, a serem aplicadas às corporações que mantinham programas efetivos. No extremo oposto, eram agravadas em até 400% as penalidades das corporações que não os possuíam. Esse quadro foi acentuado com a reforma de 2004, que buscou estimular o desenvolvimento de uma cultura corporativa de prevenção e identificação de infrações penais.
O FSGO [§8B2.1(b)] estabeleceu os sete pilares de um efetivo programa de ética e compliance: (a) criação de padrões, processos e procedimentos para prevenir e identificar infrações penais; (b) supervisão do programa pelos escalões mais elevados da corporação; (c) exclusão, das posições de maior autoridade, dos atores que, no passado, agiram à margem da juridicidade; (d) efetiva comunicação entre todos os níveis dos trabalhadores; (e) monitoramento contínuo, com procedimentos razoáveis para identificação e comunicação de infrações penais, evitando retaliações aos comunicantes, inclusive com a preservação de sua identidade; (f) execução do programa de modo consistente, balanceando de modo adequado incentivos e medidas disciplinares; e (g) auto-comunicação dos ilícitos detectados e prevenção de sua recorrência. Cf. Nitish Sing e Thomas J. Bussen, 2015: 12-13.
Com base no FSGO, o Departamento de Justiça veiculou o memorando Holder e, posteriormente, o memorando Thompson, estabelecendo os “Principles of Federal Prosecution of Business Organizations”, exigindo de todos os Promotores que considerassem, ao avaliar se deveriam promover a acusação da corporação, (a) a gravidade da infração; (b) a difusão das práticas ilícitas; (c) as condutas pretéritas; (d) a divulgação oportuna do ilícito; (e) a vontade de cooperar; e (f) a existência e a efetividade do programa de compliance. Como se percebe, programas dessa natureza, devidamente estruturados e que efetivamente alcançam a realidade, passaram a ser considerados na avaliação da conveniência de ser formulada a acusação ou mesmo na celebração de um acordo. Na Grã-Bretanha, o United Kingdom Bribery Act de 2010, que entrou em vigor em 1º de julho de 2011, considerou infração penal a failure of commercial organisations to prevent bribery, título atribuído à Seção VII. Além disso, previu que a existência de mecanismos de compliance influiria na dosimetria das sanções, a exemplo do que passou a ser feito no Foreign Corrupt Practices Act, de 1977.
O FSGO ainda ofereceu diretrizes para a definição do nível de culpabilidade das corporações nas infrações penais, o que leva em conta a gravidade da infração e a existência de fatores agravantes e atenuantes, nos termos do §8C2.5 (Martins T. Biegelman e Daniel R. Biegelman, 2008: 9). São fatores agravantes o envolvimento dos altos escalões da corporação ou sua tolerância com a atividade ilícita; o histórico de desvios da corporação; a violação de ordem judicial; e as tentativas voluntárias de obstruir ou impedir a apuração ou a punição do ilícito. São fatores atenuantes a existência, durante todo o tempo do ilícito, de um programa efetivo nos moldes delineados pelo FSGO; e a comunicação voluntária do ilícito, pela corporação, às autoridades competentes, colaborando com as investigações e aceitando a responsabilidade por suas ações (Nitish Sing e Thomas J. Bussen, 2015: 13).
O Sarbanes-Oxley Act (SOX) de 2002 exigiu das corporações públicas com ações em bolsa a adoção de um programa de compliance, também impondo, em sua seção 406, que fosse divulgado se os oficiais financeiros seniores tinham adotado um Código de Ética. A seção 806 dispõe sobre medidas de proteção para os whistleblowers (noticiantes do bem) e a seção 1.107 cominou sanções criminais para aqueles que adotassem medidas de retaliação contra esses noticiantes.
O Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act de 2010, que também reformou o Securities Exchange Act de 1934, estimulou as corporações a estabelecerem uma auto-regulação, desenvolvendo canais formais para a comunicação de ilícitos, e estatuiu que as recompensas para os whistleblowers elegíveis seriam fixadas entre 10% e 30% das penalidades financeiras pagas em processos conduzidos pela Securities and Exchange Comission (SEC), órgão que já exigira, em momento anterior, por meio do Investment Advisers Act [Rule 206(4) -7], que as corporações implementassem o programa de compliance e contassem com um chief compliance officer. Nitish Sing e Thomas J. Bussen (2015: 5) observam que a SEC recebeu 6.573 comunicações de whistleblowers entre 2011 e 2013, pagando 14,8 milhões de dólares em recompensas apenas em 2013.
O reconhecimento da importância dos programas de compliance tornou-se um lugar comum, multiplicando-se as leis sobre a temática, incluindo o fortalecimento do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA) de 1977, cujas sanções passaram a ser diretamente influenciadas pela existência, ou não, de programas efetivos como esse. Entre as leis existentes, merece destaque o Federal Acquisition Regulation (FAR), que integra o Capítulo I do Título 48 do Code of Federal Regulations e dispõe sobre políticas e procedimentos uniformes para a aquisição de bens e serviços pelos órgãos federais. A FAR exigiu que os contratados pelo governo contassem com sistema de controle interno, código de conduta e linha direta de comunicação para assegurar a efetividade do programa de compliance.
Esses aspectos estruturais são particularmente relevantes ao lembrarmos que os grandes méritos do modelo norte-americano não estão propriamente na tipificação de ilícitos e na cominação de sanções, mas, sim, no alargamento dos canais de acesso aos órgãos de persecução e na real probabilidade de o infrator sofrer uma sanção, o que diminui sobremaneira o risco de rupturas com a juridicidade e aumenta o quantitativo de denúncias espontâneas, daí a relevância, perante as autoridades competentes, das medidas internas, sintetizadas no programa de compliance, que buscam formar uma cultura corporativa , infensa à ilicitude.
No direito brasileiro, o embrião dos programas de compliance foi oferecido pela Lei nº 9.613/1998 (Lei da Lavagem de Dinheiro). Após enunciar as pessoas físicas e jurídicas que desempenham atividades potencialmente sensíveis à sua utilização para fins de lavagem de dinheiro (art. 9º), enunciou uma série de obrigações a que estavam sujeitas, a exemplo da identificação dos seus clientes, do registro das operações realizadas, do atendimento das requisições formuladas pelos órgãos competentes e da imposição de comunicação de certas operações (arts. 10 e 11). A exigência de que fosse estruturado um programa de compliance veio a ser acentuada com a Lei nº 12.683/2012, que atribuiu ao Capítulo V o título “das pessoas sujeitas ao mecanismo de controle” e alterou a redação do inciso III do art. 10 pela Lei nº 12.683/2012, impondo às referidas pessoas a obrigação de adotar políticas, procedimentos e controles internos, compatíveis com seu porte e volume de operações, que lhes permitam atender às exigências legais e à disciplina estabelecida pelos órgãos de controle. O objetivo dessas exigências era o de evitar que pessoas físicas ou jurídicas com atividades sensíveis pudessem ser utilizadas para a prática da lavagem de dinheiro. Na medida em que a inexistência ou a precariedade desses mecanismos poderia simplesmente inviabilizar a prevenção e a repressão a essa espécie de infração penal, aqueles que deixassem de cumprir suas obrigações, bem como os administradores das pessoas jurídicas, estariam sujeitos às sanções administrativas cominadas no art. 12.
Com o advento da Lei nº 12.846/2013, a relevância jurídica dos programas de compliance foi estendida à generalidade das pessoas jurídicas que se relacionam com a Administração Pública. Esse diploma normativo dispôs sobre a responsabilização das pessoas jurídicas, nos planos administrativo e cível, pela prática de atos lesivos à Administração Pública, nacional ou estrangeira. É a Lei de Responsabilização das Pessoas Jurídicas (LRPJ).
A Lei nº 12.846/2013 introduziu, em seu art. 5º, uma tipologia de ilícitos passíveis de serem praticados pelas pessoas jurídicas. Os atos lesivos podem ser agrupados nas seguintes categorias: prometer, oferecer ou dar vantagem indevida a agente público (inc, I); arcar com o ônus financeiro dos ilícitos previstos na LRPJ (inc. II); dissimular seus reais interesses (inc. III); fraudar licitações e contratos administrativos (inc. IV); e dificultar ou intervir na fiscalização de suas atividades pelos órgãos competentes (inc. V). A prática desses atos lesivos pode redundar em (1) responsabilização administrativa, daí decorrendo a possibilidade de serem aplicadas sanções de igual natureza, e em (2) responsabilização judicial, com a aplicação de sanções de natureza cível lato sensu, sem prejuízo das sanções de natureza penal e daquelas previstas na Lei n. 8.429/1992. Trata-se de técnica legislativa incomum no direito brasileiro, já que uma unidade de tipologia é utilizada simultaneamente em duas instâncias de responsabilização.
Outros dois aspectos de grande relevância dizem respeito à previsão do acordo de leniência, em que a pessoa jurídica que colaborar com as investigações e com o processo administrativo ficará isenta de algumas sanções e terá reduzida a multa que vier a sofrer, bem como à previsão de que a responsabilidade se dará de maneira objetiva, o que torna desinfluente a perquirição do dolo e da culpa daqueles que atuam como sua longa manus.
A responsabilidade objetiva, ao afastar as discussões em torno da adesão da pessoa jurídica à conduta ilícita, aumenta o seu ônus na adoção de medidas para evitar práticas ilícitas no interior de seus quadros, daí a relevância do programa de compliance. O curioso é que esse é tão somente um dos oito fatores previstos no art. 7º da Lei nº 12.846/2013, a grande maioria direcionada à natureza da conduta, que influirá na gradação das sanções a serem aplicadas, previstas nos arts. 6º e 19, conforme estejamos, respectivamente, perante a responsabilidade administrativa ou judicial cível. O detalhamento desse programa foi relegado ao plano infralegal, o que ocorreu com a edição do Decreto nº 8.420/2015, que o denominou de programa de integridade, estabelecendo os seus contornos básicos, em caráter nacional, nos arts. 41 e 42.
Com o programa de integridade, a pessoa jurídica demonstra que adotou medidas, em sede de controle interno, para assegurar o cumprimento das normas vigentes, tanto as de natureza externa como as de cunho interno. Essas medidas passam pelo (a) treinamento de funcionários e prepostos, cujas ações implicarão diretamente a pessoa jurídica a que estão vinculados; (b) estabelecimento de códigos de ética internos; (c) zelo da escrituração contábil e a constante avaliação da veracidade das informações existentes; (d) controle das oscilações do ativo e do passivo da pessoa jurídica, com especial ênfase para a aquisição e venda de bens duráveis, que podem encobrir transações ilícitas com agentes públicos; (e) o acompanhamento das atividades terceirizadas, em especial daquelas em que há representação dos interesses da pessoa jurídica junto ao Poder Público, como ocorre com contadores e advogados; (f) desenvolvimento de mecanismos que facilitem o acesso à pessoa jurídica e o fluxo de informações, como é o caso das ouvidorias, que devem estar vinculadas, preferencialmente, aos níveis mais elevados da hierarquia interna etc. Exigem, ainda, comprometimento desses níveis mais elevados de direção com o combate à corrupção, padrões objetivos de relacionamentos com terceiros, principalmente em relação à distribuição de brindes e à realização de contribuições, e efetivo acompanhamento das medidas adotadas. O programa de integridade tende a alcançar maiores níveis de efetividade conforme seja ampliada a autonomia do respectivo gestor, o compliance officer. A higidez dos programas de integridade torna-se particularmente relevante em relação às sociedades empresárias que desenvolvam atividades em outros países, já que, por força do seu art. 28, a LRPJ alcança, igualmente, “os atos lesivos praticados por pessoa jurídica brasileira contra a administração pública estrangeira, ainda que cometidos no exterior”. Para que os programas tenham o mínimo de efetividade, é preciso a identificação das variáveis de risco, que passam pelo território de atuação da pessoa jurídica e a base de valores sedimentada no ambiente social; o nível de relacionamento com o setor público; as atividades desempenhadas; a existência, ou não, de intermediários; a liberdade valorativa e decisória dos agentes públicos etc. Essas informações são colhidas a partir da análise de documentos, entrevistas, pesquisa de campo etc. O modelo brasileiro, em que os esforços com a prevenção podem influir na dosimetria das sanções a serem aplicadas, já é adotado em outros países, como a Espanha (CP, art. 31-bis).
A Lei n. 13.303/2016, que dispôs sobre o estatuto jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista, estatuiu, em seu art. 17, § 4º, que os administradores eleitos deveriam participar, anualmente, de treinamentos sobre controle interno, código de conduta e a LRPJ, acrescendo, em seu art. 9º, a necessidade de serem adotadas regras de estruturas e práticas de gestão de risco e controle interno que cumpram os requisitos ali previstos.
Ainda merece realce a tímida utilização, no direito brasileiro, do whistleblower. Foi previsto na Lei nº 13.608/2018, cujo art. 4º dispôs que “a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, poderão estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos”. A mesma sistemática foi introduzida no art. 4º, VI e VII, da Lei n. 10.201/2001, sendo prevista, além da garantia de sigilo, a premiação em dinheiro para a resolução de crimes. Este último diploma legal foi revogado pela MP n. 841/2018, que dispôs sobre o Fundo Nacional de Segurança e encampou o mecanismo no art. 5º, IX e X, mas teve a sua vigência encerrada no prazo constitucional. Além da timidez normativa, tem-se uma nítida inversão de valores no ambiente social, que vê de modo negativo aquele que fornece informações, às autoridades competentes, sobre os autores de ilícitos.
3. A cultura corporativa enquanto resultado da transição do plano deontológico para o axiológico
A cultura pode ser vista como um processo essencialmente dinâmico, apresentando variações conforme os circunstancialismos de ordem pessoal, espacial e temporal. Individualiza uma comunidade e a distingue de outras comunidades. A cultura assume, a um só tempo, os mesmos traços que os antropólogos costumam lhe atribuir, vale dizer, é algo que todos têm, contrastando com a “cultura” encontrada em certos ciclos intelectualizados (Richard A. Hudson, 1996: 70); e os mesmos contornos que formam o plano de desenvolvimento de qualquer investigação de natureza sociológica, apontando para a identidade de uma comunidade.
Além de processo, cultura também é significado. Exige a percepção do contexto e a realização de juízos valorativos, permitindo sejam individualizadas as características de uma comunidade. A apreensão da identidade cultural é influenciada não só por uma base empírica, como pelos referenciais de racionalidade, expressando convergência e um locus comum no ambiente sociopolítico, e emotividade, que externa a sensibilidade do intérprete no delineamento de uma identidade que, em última ratio, é igualmente sua.
Cultura, em seus contornos mais amplos, é tudo aquilo que, para além das funções biológicas e do oferecido pela natureza, “dá à vida e à atividade humanas, forma, sentido e conteúdo” (E. Benveniste, 1966: 30). É, acima de tudo, fruto do processo social, marcado pela contínua interação e renovação dos indivíduos, que, além de conviver no mesmo ambiente, são alcançados pelo ciclo vital da espécie humana, que principia com o nascimento e cessa com a morte. Esse processo faz que gerações contemporâneas, em razão de sua contínua convivência, passem a partilhar de algumas ideias e símbolos, bem como que cada nova geração comece sua formação integrada a esse processo, o que possibilita o contato com o adquirido social e a sua consequente evolução.
Em uma concepção elitista, cultura seria o nome dado ao melhor que já foi feito e pensado nas mais diversas searas da atividade humana (v.g.: literatura, arte, música, ciências etc.); Para concepções populares, indicaria os aspectos da vida diária, que delineiam o modo de ser e agir de uma coletividade (v.g.: culinária, estilo de vida, indumentária etc.) – Cf. Brenda Almond, 2003: 37. Cada sociedade tem suas próprias ideias coletivas, que se tornam comuns, ao menos parcialmente, entre os membros da população, e formam a sua cultura. Cf. José Luiz Bulhões Pedreira, 2008: 201. Face à individualidade de cada ser humano, é natural que nem todos tenham apreendido ou partilhem dos elementos que delineiam a cultura de uma sociedade. Enquanto alguns desses elementos são mais generalizados, outros só se manifestam em setores específicos do ambiente sociopolítico. Sociedade multicultural, por sua vez, é aquela em que se verifica uma diversidade de manifestações culturais, não raro inconciliáveis entre si, no âmbito dos diferentes grupos que a compõem.
Do mesmo modo que temos uma cultura social, é possível falarmos em uma cultura corporativa. Em uma análise mais superficial, a cultura corporativa, enquanto microcosmos que é contextualizado e se desenvolve em um universo sociopolítico delimitado, qual seja, em um País e em uma sociedade em particular, poderia ser vista como um recorte da cultura social, que seria delineada pelas lentes da atividade econômica desenvolvida. Diz-se que essa análise é superficial por duas razões básicas.
A primeira razão aponta para a constatação de que o multiculturalismo, em uma era de globalização econômica, torna mais intensa a fusão de horizontes culturais e, em alguns casos, a própria preeminência da cultura da matriz sobre a cultura do País hospedeiro, o que afasta a imagem dos círculos concêntricos e atrai a dos círculos secantes, em que a cultura corporativa se identifica apenas parcialmente com a cultura social.
A segunda razão está associada à imposição externa, realizada pela ordem jurídica de cada País no qual a corporação tenha operações ou pelo direito internacional convencional, que atrai a observância dos comandos normativas, não raro dissociados da cultura social, os quais influenciarão na cultura corporativa, já que sua inobservância pode redundar na imposição de sanções e, no extremo, na própria dissolução da corporação. Embora possa soar estranho, já que o direito é um fenômeno social, não é incomum que a elaboração das normas de conduta seja direcionada por uma pureza ético-moral, de todo dissociada da cultura social. Nesse caso, é possível que a validade jurídica se dissocie da validade social, com a eventual ocorrência do fenômeno da denominada derrogação costumeira ou desuso (“Phänomen der Derogation durch Gewohnheitsrecht – desuetudo” – Robert Alexy, 2002: 147), em que a norma permanece formalmente hígida, mas é socialmente inválida, de modo que a perda de sua juridicidade é medida extrema, que principia pela sua não invocação no âmbito dos tribunais, até que seja obtido o expresso reconhecimento de sua não imperatividade. Cf. Aleksander Peczenik, 1989: 29.
Embora o deontológico ocupe um plano existencial distinto do axiológico, é factível a influência que exerce sobre este último. Ainda que as normas externas e internas a serem observadas na corporação possam encontrar a resistência dos colaboradores, mais afeiçoados a uma cultura social de todo infensa a padrões ótimos de ética e moralidade, a efetividade dos mecanismos de controle interno, com ênfase para o código de ética, a ouvidoria, a fiscalização e a responsabilização, tende a delinear, a partir da longa repetitio, uma base de valores estranha ao ambiente externo.
O zelo dos altos escalões da corporação na efetividade do programa de compliance tende a fazer que a coerção própria do plano deontológico transite para a voluntária adesão inerente ao plano axiológico. Para que essa transição seja possível, é necessária a formação de uma base de valores que dará sustentação a uma cultura corporativa plenamente harmônica com as imposições externas.
O valor, que tem natureza transitória e contingente (Andrea Longo, 2002: 87), pode assumir contorno puramente subjetivo, surgindo a partir da crença, individual ou comunitária, da preferibilidade de algo (Joseph Raz, 2002: 11); ou objetivo, sendo extraído de certa base de análise, como o direito posto, a sociedade ou o ambiente corporativo. Em outras palavras, reflete tanto uma atitude por parte do sujeito, o ato de avaliar ou valorar, como uma característica atribuída ao objeto (Aleksander Pekzenick, 1989: 75). Uma teoria dos valores evidencia a distinção entre posturas puramente descritivas e críticas: enquanto as primeiras indicam um comportamento neutral por parte do intérprete; as segundas refletem a sua opinião a respeito do objeto interpretado (Ralph Barton Perry, 2007: 3). Quem descreve se limita a observar, constatar, medir. Quem critica avança da observação, constatação ou medição, para amar, odiar, aprovar ou desaprovar aquilo que foi observado, constatado ou medido. As opiniões obtidas a partir da crítica possibilitarão o delineamento de uma diversidade de valores, que refletirão a percepção do intérprete a respeito de cada um dos objetos interpretados.
A teoria dos valores, embora possa se voltar tanto ao estudo do ato de valorar, como ao objeto passível de valoração, é sempre estruturada a partir de considerações de natureza ontológica, genealógica e epistemológica, vale dizer, busca identificar o que são os valores, qual a sua origem e qual o conhecimento que se tem sobre eles. Cf. Sanne Taekema, 2002: 2. A opção por uma ou outra vertente, vale dizer, pelo objeto ou pela ação, tende a ser influenciada pela adesão, respectivamente, às teorias cognitivistas ou não cognitivistas. Cf. Aleksander Peczenick, 1989: 47 e Folk Tersman, 2006: 2.
Consideram-se cognitivistas ou descritivistas as teorias que identificam os valores a partir de uma base de análise de natureza estática, permitindo concluir pela verdade ou falsidade das conclusões alcançadas, já que os valores, nesse caso, são tão somente conhecidos. Essas teorias podem ser subdivididas em naturalistas e não naturalistas: no primeiro caso, a base de análise está consubstanciada em um referencial metafísico (v.g.: razão, natureza etc.); no segundo, por sua vez, busca sustentação em propriedades não naturais que apresentam uma relação de inerência com pessoas, objetos, ações e fatos. Em ambos os casos, quer sejam obtidos a partir de um referencial externo ao objeto considerado, quer sejam tidos como inerentes a ele, os valores, repita-se, serão apenas conhecidos. Essas teorias apresentam a evidente dificuldade em demonstrar a subsistência de referenciais axiológicos à margem das vicissitudes do contexto e da capacidade de apreensão do intérprete.
As teorias não cognitivistas, por sua vez, encontram sustentação no entendimento de que, qualquer que seja a base de sustentação dos valores, ela assume contornos meramente exibicionistas. Não oferece valores prontos e acabados. E muito menos permite ao intérprete desenvolver uma atividade puramente descritiva. Fala-se em exibicionismo para indicar o oferecimento das variáveis sobre as quais o intérprete desenvolverá a sua atividade intelectiva, o que lhe permitirá delinear os valores pertinentes ao caso. Não é incomum que construções não cognitivistas sustentem que juízos valorativos são frutos de sentimentos ou emoções, o que certamente compromete a racionalidade da construção. Em qualquer caso, o intérprete, a partir de uma base ao alcance de todos, delineia, com os influxos de sua personalidade, os valores, que não poderão ser considerados verdadeiros ou falsos (Aleksander Peczenick, 1989: 49 - de acordo com o autor, os valores “can no be true than numbers healthy”).
Os valores que se desprendem do programa de compliance e concorrem para a formação da cultura corporativa são essencialmente cognitivistas e não naturalistas, tendo um objeto de análise bem delimitado.
Epílogo
A estruturação de programas de compliance é uma exigência indissociável das corporações contemporâneas. Apesar de não termos a ingenuidade de afirmar que a adstrição a padrões éticos e morais decorre de uma espécie de imperativo categórico corporativo, indicando que somente se faz ao próximo aquilo que se deseja seja feito para si, a verdade é que imposições normativas e o risco de sofrer sanções exigem o aprimoramento dos mecanismos de controle interno. Se estamos perante a imposição de condutas, o que é típico do plano deontológico, não é utópico projetarmos a possibilidade de formarmos uma cultura corporativa direcionada pela base de valores que se forma a partir do referido plano.
Caso a corporação logre êxito na formação de uma cultura corporativa harmônica com padrões ótimos de ética e moral, é perfeitamente possível que seus colaboradores, longe de serem impelidos a atuar desta ou daquela maneira, passem a aderir voluntariamente a esses valores. Essa adesão tende a aumentar o nível de satisfação interna e a maximizar os resultados a serem obtidos.
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[1] A Convenção foi promulgada na ordem interna pelo Decreto nº 3.678/2000 e ensejou a inserção de um Capítulo II-A no Título XI do Código Penal brasileiro, intitulado “Dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública Estrangeira”.