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Fraude na pavimentação de vias asfálticas: uma ilicitude crônica na realidade brasileira

Resumo: A pavimentação de vias asfálticas tem se tornado um problema crônico no âmbito das contratações públicas. Não é incomum que, pouco depois da conclusão de obras dessa natureza, o asfalto já apresente falhas, exigindo novas contratações para a sua recuperação, renovando-se o ciclo vicioso. O objetivo de nossa análise análise é o de identificar, em breves linhas, como uma precária ideologia participativa, o que diminui sobremaneira a fiscalização popular, além do conluio entre empreiteiras e agentes públicos, especialmente por ocasião da liquidação da despesa pública, contribuem para a continuidade desse quadro. Para combatê-lo, é imprescindível o aprimoramento dos mecanismos de controle, interno e externo.

       Em um País de dimensões continentais, como a República Federativa do Brasil, é fácil intuir a importância assumida pelas vias asfálticas, constatação potencializada ao lembrarmos a timidez com que nossa malha ferroviária é estruturada e utilizada.

        Vias asfálticas extensas e numerosas pressupõem a celebração de inúmeros contratos administrativos, quer para abri-las e capeá-las, quer para recapeá-las, o que tende a se mostrar inevitável na medida em que sua existência se protraia no tempo. 

       Por mais paradoxal que possa parecer, obras e serviços dessa natureza têm sido caracterizadas por um elevado quantitativo de fraudes. Fraudes praticadas não necessariamente na seleção daquele a que será adjudicado ou no sobrepreço do objeto do contrato, o que pouco diferenciaria essa espécie de contrato da generalidade dos ajustes celebrados pela Administração Pública. Em verdade, o que tem chamado a atenção é o fato de as fraudes se apresentarem no momento da execução do contrato. 

        O paradoxo a que nos referimos decorre da constatação de que as vias asfálticas estão à vista de todos, de modo que os administrados em geral podem acompanhar o seu surgimento e a sua correlata conservação. A transparência, nesses casos, se apresenta in re ipsa, se desnudando em plena luz do dia, aos olhos de qualquer curioso que, por um átimo qualquer, pretenda se inteirar da realidade circundante.

        Em uma escala de ilicitude, as fraudes podem se apresentar em distintos níveis, principiando pelo surgimento da via asfáltica, de modo que a via que deveria ser aberta e capeada simplesmente não o é, avançando pela sua construção com o emprego de materiais em quantidade ou qualidade inferior à devida, o que redunda na redução de sua durabilidade e culmina com a necessidade de recapeamentos frequentes, os quais, em muitas ocasiões, ou não são realizados ou o são de maneira indevida, daí decorrendo a renovação do ciclo.

         É difícil entender a razão de, em pleno século XXI, em todas as regiões do País, em algumas de modo mais acentuado, em outras não, convivermos pacificamente com fraudes dessa natureza. Do mesmo modo, é tarefa assaz difícil encontrar um brasileiro que jamais tenha se deparado com uma via asfáltica repleta de buracos poucos meses após a sua inauguração ou que veja buracos ressurgirem com assustadora frequência, em um movimento circular que nos faz lembrar uma verdadeira fênix. Parece que todos nós, entorpecidos por um problema crônico, terminamos por nos acostumar com ele, talvez em uma manifestação contemporânea do velho ditado de que “o uso do cachimbo deixa a boca torta”.

       Um primeiro fator que certamente explica esse estado de coisas é o acentuado déficit de democracia participativa presente em nossa realidade. Essa espécie de democracia, voltada à aproximação do individual ao social, busca sedimentar uma ideologia coletiva, reflexo da constatação de que problemas setoriais tendem a se transmudar em problemas gerais. Como ressaltado por Eisenstadt (2000: 7), a democracia deve ser realizada com a participação contínua e responsável, no processo político, de grandes setores da população: é uma forma de participação ativa, não de mera figuração. A partir da interação entre indivíduos e estruturas de poder, tem-se a proliferação e consequente sedimentação de um sentimento de inserção, que desempenha relevante função educativa na formação da sociedade.

            O mundo contemporâneo tem testemunhado o predomínio de concepções individualistas em detrimento das coletivistas: há uma força centrípeta que atrai a visão do indivíduo, cada vez mais, para o interior do seu ser, raramente assumindo colorido centrífugo, em que sua atenção se projeta para a coletividade. Em Atenas, era reprovado o comportamento daqueles que constantemente deixavam de participar das reuniões da assembleia (Ekklesia), sendo considerados idiotai, designativo empregado para os que somente se preocupavam com os seus interesses particulares (COMPARATO, 2006: 648). 

            Se o atrofiar de concepções coletivistas e o fortalecimento do individualismo assumem contornos universais, o quadro é muito mais acentuado em países de modernidade tardia, nos quais a média da população tem reduzido nível de instrução, sendo, não raro, incapaz de desenvolver a moral crítica a que se referia Hart. A incapacidade de apreender a realidade, formar juízos de valor ao seu respeito e direcionar-se de acordo com eles certamente contribui para o surgimento e a realimentação do inusitado, como se verifica no testemunho silencioso de que o asfalto, no Brasil, esfarela, esburaca ou simplesmente desmancha pouco depois do seu surgimento. Na medida em que as práticas se repetem, surge uma base de valores distorcida tanto no ambiente administrativo como no social, o que contribui para a sua continuidade e o surgimento de um sentimento de normalidade. 

            As fraudes na pavimentação asfáltica, na maior parte das vezes, estão associadas ao conluio com algum agente público. Esse conluio se manifesta durante a execução do contato, já que, pelas próprias características do objeto, é imprescindível o seu acompanhamento pari passu. Afinal, somente assim é possível identificar a forma de preparo do solo; a qualidade da mistura asfáltica utilizada, normalmente composta de 95% de pedra britada e 5% de asfalto; a espessura da capa asfáltica; as características dos canos utilizados para a drenagem da via e de outros materiais que terminam por ser encobertos etc. Atestado o cumprimento do contrato, inúmeras irregularidades terminam por permanecer adormecidas sob o próprio asfalto.

            Não se ignora, é certo, que os históricos problemas identificados nas vias asfálticas brasileiras também podem estar associados a falhas no projeto, nem sempre por dolo, mas por inépcia; a razões de ordem econômica, que influem na redução da espessura do asfalto, de modo que uma área maior possa ser abrangida pela política de pavimentação; e mesmo à natureza do material utilizado, a começar pela qualidade do asfalto, já que a indústria petroquímica, em muitas ocasiões, opta pela fabricação de gasolina e de querosene, este para aeronaves, o que reserva para o asfalto apenas o resíduo da produção, de baixa qualidade. Esses aspectos tendem a tornar a pavimentação ambientalmente insustentável, diminuindo a sua vida útil e aumentando a rotatividade das pedreiras com a constante necessidade de recapeamento.

         Ainda que haja concausas para a má-qualidade do asfalto brasileiro, o conluio entre agentes públicos e contratados tem sido uma das causas de maior relevância no delineamento desse quadro. O agente público que, no momento da liquidação da despesa pública, recebe vantagem econômica, para fazer declaração falsa sobre medição ou avaliação em obras públicas ou qualquer outro serviço, pratica o ato de improbidade administrativa a que se refere o art. 9º, VI, da Lei nº 8.429/1992. Mesmo que não haja prova do recebimento da vantagem indevida, a responsabilidade poderá ser perquirida à luz do dano causado ao patrimônio público (art. 10) ou da violação aos princípios regentes da atividade estatal (art. 11), em razão do pagamento integral de obra ou serviço de qualidade inferior à devida ou que, em inúmeros casos, sequer foi concluído (GARCIA, 2017: 519).

        Situação pitoresca foi julgada pela 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, sendo relator o Desembargador Jessé Torres Pereira Júnior[1]. O caso concreto versava sobre contrato administrativo, celebrado com base no resultado de licitação na modalidade de tomada de preços, visando à execução  de obras de pavimentação asfáltica em diversas vias públicas do Município de Bom Jesus do Itabapoana. Ocorre que laudo técnico produzido perante a Comissão Especial de Inquérito na Câmara Municipal, e, outro, em Juízo, demonstraram que não houve capeamento asfáltico em toda a extensão contratada, tampouco recomposição de drenagem. Embora o serviço não tenha sido efetivamente prestado, os valores foram pagos à empresa contratada. Na ocasião, a partir de ação civil ajuizada pelo Ministério Público, foi reconhecida a prática do ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei nº 8.429/1992, em razão da omissão dos agentes púbicos, que deixaram de fiscalizar a execução do contrato e liberaram recursos públicos com base em obra não concluída.

          Apesar de pitorescas, situações como a descrita são corriqueiras em nossa realidade. É até mesmo difícil dimensionar o quantitativo de recursos públicos aplicados de modo irresponsável ou simplesmente desviados nos incontáveis contratos administrativos relacionados à pavimentação de vias asfálticas. A alteração desse quadro soa como verdadeiro dever cívico da generalidade dos brasileiros, além de importante missão dos órgãos de controle, interno e externo. Quem sabe não seja o momento de se lançar a campanha de conscientização Asfalto Legal.

 

REFERÊNCIAS

COMPARATO, Fábio Konder. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

EISENSTADT, Shmuel Noah. Os Regimes Democráticos. Fragilidade, Continuidade e Transformabilidade. Trad. de Carlos Leone. Oeiras: Celta, 2000.

GARCIA, Emerson. Improbidade Administrativa, 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2017.

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. 2ª Câmara Cível. Apelação nº 0004047-70.2009.8.19.0010. Relator Des. Jessé Torres Pereira Júnior. Rio de Janeiroj. em 08/05/2019, DJ de 09/05/2019. Disponível em http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000446830D2BA5DE4D11418D41676E2DA30BC50A200F5B0B. Acesso em 16 de março de 2021.

[1] Apelação nº 0004047-70.2009.8.19.0010. Relator Des. Jessé Torres Pereira Júnior. Rio de Janeiroj. em 08/05/2019, DJ de 09/05/2019. Disponível em http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=000446830D2BA5DE4D11418D41676E2DA30BC50A200F5B0B. Acesso em 16 de março de 2021.


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