Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. A sistemática constitucional; 3. A sistemática infraconstitucional; Epílogo.
- Aspectos introdutórios
Diversamente dos contratos sinalagmáticos, caracterizados pela existência de interesses contrapostos, é comum que a Administração Pública celebre ajustes em que haja convergência de interesses, podendo redundar, ou não, na transferência voluntária de recursos financeiros, com, ou sem, a correlata apresentação de contrapartidas, para a realização dos objetivos almejados. Estes últimos ajustes são os acordos referidos por Betti. Apesar da distinção, o grande complicador enfrentado pelo operador do direito é a inexistência de uniformidade e de rigor científico nessa seara. Emilio Betti,[1] em seu estudo sobre os negócios jurídicos, distinguiu o acordo, “o negócio (sobretudo o plurilateral, mas também o bilateral), com interesses paralelos ou convergentes para um escopo comum”, do contrato, em que há “interesses opostos ou divergentes”. Apesar da distinção, o grande complicador enfrentado pelo operador do direito é a inexistência de uniformidade e de rigor científico nessa seara.
Ao analisarmos a ordem constitucional, identificamos a menção a inúmeros instrumentos distintos, com destaque para os convênios. Estes instrumentos têm sido doutrinariamente diferenciados dos contratos pela presença de um objetivo comum a ser realizado, para o qual converge a atuação dos convenentes. Além disso, a inobservância dos seus termos ou o desinteresse no seu prosseguimento não se resolve em perdas e danos, e muito menos se afeiçoa ao formalismo de uma rescisão, bastando, ressalvada alguma exceção expressa no ajuste, a mera comunicação de um convenente ao outro. A simplicidade dessas lições, no entanto, rivaliza com a complexidade da ordem jurídica brasileira, que passou a prever uma pluralidade de ajustes, que devem ser utilizados conforme o objeto, a natureza dos pactuantes e a transferência, ou não, de recursos. Complexidade à parte, a análise há de principiar pelos convênios.
2. A sistemática constitucional
Na sistemática adotada pela Constituição de 1988, o significante preferido, embora não seja o único, é o convênio.
O art. 37, XXII, dispõe que as administrações tributárias dos entes federativos, além de terem recursos próprios, “atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio”. A dicotomia entre lei e convênio evidencia a distinção entre o que é imposto e o que é acordado; o acordo, por sua vez, em razão do seu próprio objeto, que pode se resumir ao compartilhamento de dados, nem sempre importará no repasse de recursos, o que não parece ser de sua essência. A esse respeito, vale observar que a Lei nº 5.172/1966, que veiculou o Código Tributário Nacional, dispôs sobre a utilização dos convênios como instrumentos de repartição das receitas tributárias (art. 82), de modo que há recursos envolvidos; como normas complementares (arts. 100, IV; 102 e 103, III); ou, juntamente com a lei, como instrumentos de assistência recíproca para a fiscalização dos tributos respectivos ou repasse de informações entre os entes federativos, ou entre a União e Estados estrangeiros (art. 199, caput e parágrafo único); sendo oportuno ressaltar que o parágrafo único do art. 199 foi inserido pela Lei Complementar nº 104/2001, o que evidencia uma visão mais recente a respeito da utilização do convênio em situações em que não há recursos envolvidos. Os arts. 213 e 214 da Lei nº 5.172/1966 ainda fazem menção aos convênios como instrumentos para a uniformização tributária e a não incidência de imposto nas situações que indicam.
O art. 39, § 2º, trata das escolas de governo a serem mantidas por todos os entes federativos, “constituindo-se a participação nos cursos um dos requisitos para a promoção na carreira, facultada, para isso, a celebração de convênios ou contratos entre os entes federados”. O convênio, nesse caso, pode ensejar o repasse de recursos financeiros, a exemplo da estruturação de projetos pedagógicos em comum, ou não, o que se verifica com a pura e simples autorização de frequência, pelos servidores de um ente, aos cursos organizados por outro.
O art. 71, VI, faz menção expressa à possibilidade de serem repassados recursos financeiros por meio de convênios, isto ao dispor que compete ao Tribunal de Contas “fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município.” O comando constitucional também atesta a falta de técnica nessa seara, ao dispor que os repasses também podem ser realizados mediante “acordo”, embora o “convênio”, em si, seja uma espécie de acordo, bem como por “ajuste”, que não deixa de ser um acordo, ou “outros instrumentos congêneres”. Em outras palavras, com abstração do designativo atribuído ao ajuste, identificado o repasse de recursos da União, a atuação do Tribunal de Contas é medida que se impõe.
O Art. 160, § 2º, trata da inserção, nos ajustes celebrados pela União em que haja repasse de recursos, de cláusulas que autorizem a dedução, dos valores devidos, dos montantes relacionados às cotas do respectivo ente nos Fundos de Participação ou aos precatórios judiciais. Esses ajustes são detalhados como sendo “os contratos, os acordos, os ajustes, os convênios, os parcelamentos ou as renegociações de débitos de qualquer espécie, inclusive tributários.” Também aqui, acordos, ajustes e convênios são postos lado a lado, não havendo dúvidas de que o seu objeto também envolve o repasse de recursos, daí a preocupação em se assegurar um mecanismo de compensação para a União, ente credor.
O art. 166-A, ao tratar da possibilidade de as emendas parlamentares ao projeto de lei orçamentária anual, de caráter impositivo, direcionarem recursos aos entes subnacionais, ressaltou, no inciso I do parágrafo 2º, que a União os repassaria “independentemente de celebração de convênio ou de instrumento congênere”, o que indica claramente que o convênio seria instrumento hábil para a transferência de recursos.
O art. 199, § 1º, dispôs que as instituições privadas podem participar de forma complementar do sistema único de saúde, “mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos”. Nesse caso, ou serão pagas para atuar, o que enseja a celebração de contrato, em razão da presença de interesses contrapostos, ou atuarão com convergência de interesses, o que é típico das entidades filantrópicas e das sem fins lucrativos, exigindo a celebração de convênio. Neste último caso, como as entidades não buscam o lucro, a tendência é a de necessitarem do repasse de recursos públicos para que possam atuar.
O art. 241 dispôs que os entes federativos devem disciplinar por meio de lei os consórcios públicos e os denominados convênios de cooperação entre esses entes, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. Nesses casos, há convergência de interesses, sendo os recursos públicos empregados na realização de fins de interesse comum.
O art. 34, § 8º, do ADCT fez menção ao convênio a ser celebrado entre os Estados membros para disciplinar a instituição do ICMS, enquanto não fosse editada a lei complementar exigida pelo art. 155, I, b. Nesse caso, o convênio teria a natureza de ato administrativo de cunho normativo, produzido de maneira colegiada, não instrumentalizando, portanto, qualquer repasse de recursos.
O art. 41, § 3º, do ADCT dispôs que os incentivos fiscais concedidos pelos Estados, via convênio, com base na ordem constitucional pretérita, deveriam ser reavaliados e reconfirmados no prazo de dois anos, a contar de 5 de outubro de 1988.
3. A sistemática infraconstitucional
No plano infraconstitucional, o emprego de significantes diversos, sem uma distinção nítida em relação aos objetivos almejados com cada qual, tem sido a tônica.
A Lei nº 8.666/1993 (Antiga Lei de Licitações e Contratos Administrativos) fez menção ao convênio, colocando-o lado a lado dos acordos e dos ajustes, nos arts. 38, parágrafo único; e 116. Neste último preceito, fez menção, relativamente ao convênio, ao plano de aplicação dos recursos financeiros (§ 1º, IV), ao cronograma de desembolso (§ 1º, V); à liberação das parcelas e ao possível desvio de finalidade na aplicação dos recursos (§ 3º); aos saldos, tanto durante a sua execução (§§ 4º e 5º) como por ocasião da cessação dos seus efeitos (§ 6º). Além disso, fez menção em separado ao “convênio de cooperação”, já previsto na ordem constitucional (art. 241) como um dos instrumentos, juntamente com o consórcio público, para se estabelecer a prestação de serviços públicos de forma associada (art. 23, XXVI), o que pode acarretar o repasse de recursos ou mesmo uma divisão de tarefas, de modo que cada ente federativo assuma os ônus que lhe são próprios.
A Lei nº 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos), além da menção aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres, também passou a mencionar os “termos de cooperação” (art. 53, § 4º). Ainda fez menção ao convênio de cooperação (art. 75, XI), atribuindo-lhe a mesma funcionalidade da Lei nº 8.666/1993 (art. 23, XXVI). Ao tratar da nulidade dos contratos, fez menção, lado a lado dos contratos, à necessidade de se avaliar o “custo total e estágio de execução física e financeira” dos convênios (art. 147, VIII), exemplo nítido de que os convênios podem ser utilizados para a transferência de recursos financeiros. Por fim, o art. 184 dispôs que as disposições da Lei nº 14.133/2021 seriam aplicadas, “no que couber e na ausência de norma específica, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração Pública, na forma estabelecida em regulamento do Poder Executivo federal”. Com isso, foi permitido que o Poder Executivo estabelecesse a funcionalidade de cada um desses instrumentos, de modo a indicar de que forma sofreriam a incidência desse diploma normativo. Ainda se identifica uma curiosidade: por que o art. 184 não mencionou os “termos de cooperação”, alçados ao plano legal, não mais puramente regulamentar, pelo art. 53, § 4º?
A opção do art. 53, § 4º, da Lei nº 14.133/2021, ao mencionar a figura do “termo de cooperação”, certamente sofreu a influência da sistemática instituída pelo Decreto nº 6.170/2007, que dispôs, nos termos da sua ementa, sobre as “transferências de recursos da União mediante convênios e contratos de repasse”. Além de estatuir expressamente que o convênio é o instrumento a ser utilizado para as transferências voluntárias realizadas pela União para órgão ou entidade vinculado à própria União ou a outro ente federativo (art. 1º, § 1º, I), na linha do que já fizera em momento pretérito a Instrução Normativa nº 1/1997, da Secretaria do Tesouro Nacional (art. 1º, § 1º, I); e de considerar que o contrato de repasse é o instrumento a ser utilizado quando os recursos fossem transferidos por meio de instituição ou agente financeiro público federal (art. 1º, § 1º, II); o decreto também dispôs que o termo de cooperação era o instrumento a ser utilizado na “modalidade de descentralização de crédito entre órgãos e entidades da administração pública federal, direta e indireta, para executar programa de governo, envolvendo projeto, atividade, aquisição de bens ou evento, mediante portaria ministerial e sem a necessidade de exigência de contrapartida” (art. 1º, § 1º, III). Como se constata, tanto o convênio como o termo de cooperação instrumentalizavam a transferência de recursos da União. Com o advento do Decreto nº 8.180/2013, o termo de cooperação foi suprimido do Decreto nº 6.170/2007. Pouco antes da supressão, certamente influenciando-a, a Advocacia-Geral da União, no âmbito do Parecer nº 15/2013/AGU/PGF, adotou a tese de que o “acordo de cooperação” deve ser o instrumento utilizado nos ajustes em que haja convergência de interesses, mas sem transferência de recursos, entre órgãos ou entidades públicas, e entre estes e entes privados, verbis:
"I - O acordo de cooperação é o instrumento jurídico hábil para a formalização, entre órgãos e entidades da Administração Pública ou entre estes e entidades privadas sem fins lucrativos, de interesse na mútua cooperação técnica, visando à execução de programas de trabalho, projeto/atividade ou evento de interesse recíproco, da qual não decorra obrigação de repasse de recursos entre os partícipes.
II - A disciplina do Decreto nº 6.170/2007 e da Portaria Interministerial MP/MF/CGU nº 507/2011 não se aplica ao acordo de cooperação, incidindo apenas, no que couber, o disposto no art. 116, caput e §1º, da Lei nº 8.666/1993."
Não é demais observar que o objetivo da iniciativa foi o de estabelecer um mínimo de rigor terminológico, ainda que com a utilização de enunciados linguísticos não previstos em lei. Verifica-se, ainda, o cuidado em não se utilizar o significante “termo de cooperação”, de modo a evitar que fosse confundido com o congênere então disciplinado no Decreto nº 6.170/2007, que apresentava contornos de onerosidade. Com isso, convênios e contratos de repasse passaram a ser utilizados no âmbito federal apenas quando há transferências de recursos entre os participantes. Sem prejuízo dos nobres objetivos almejados, não havia na legislação brasileira uma distinção que permitisse confinar o significante “convênio” exclusivamente às situações em que ocorresse transferência de recursos. Ainda que sejam muitos os exemplos em que isto ocorre, o que permite falar em uma tendência, tanto as normas constitucionais como as infraconstitucionais autorizam a utilização do significante convênio sem que tal transferência ocorra.
Nova disciplina foi estabelecida pelo Decreto nº 11.531/2023, que revogou o Decreto nº 6.170/2007. A funcionalidade do convênio e do contrato de repasse foi preservada, sendo ainda instituída a figura do “convênio de receita”, em que órgão ou entidade da Administração Pública federal recebe recursos para a execução de programa estadual, distrital ou municipal, ou em que órgão ou entidade dessa natureza, integrante do Orçamento Fiscal e da Seguridade Social da União, recebe recursos para a execução de programa a cargo de entidade integrante do Orçamento de Investimento da União. Para os ajustes de interesse recíproco, nos quais não haja transferência de recursos ou doação de bens, foram previstos o “acordo de cooperação técnica” e o “acordo de adesão”, conforme haja, ou não, livre pactuação das respectivas cláusulas. Foi previsto, ademais, que o decreto não seria aplicável aos instrumentos a que se refere a Lei nº 13.019/2014; sendo ainda permitido, com as modificações introduzidas no art. 26, §2º, pelo Decreto nº 12.025/2024, que ato conjunto dos titulares do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos, do Ministério da Fazenda e da Controladoria-Geral da União afaste as regras e as exigências do Decreto nº 11.531/2023, quando isto for necessário para a instituição do regime simplificado previsto no art. 184-A da Lei nº 14.133/2021.
A supressão da figura do termo de cooperação, do Decreto nº 6.170/2007, pelo Decreto nº 8.180/2013, como vimos, não impediu a sua utilização no art. 53, § 4º, da Lei nº 14.133/2021. Aliás, o mesmo ocorreu com a Lei nº 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa), com as alterações introduzidas pela Lei nº 14.230/2021, que sujeitou às sanções ali cominadas, no que se refere a recursos de origem pública, “o particular, pessoa física ou jurídica, que celebra com a administração pública convênio, contrato de repasse, contrato de gestão, termo de parceria, termo de cooperação ou ajuste administrativo equivalente” (art. 2º, parágrafo único). Todas essas figuras, de acordo com a disciplina legal, podem ser utilizadas para a transferência de recursos, o que será feito para a realização de interesses comuns, não propriamente em razão da existência de obrigações recíprocas, sistemática que inclui o convênio e o termo de cooperação. Em sentido diverso, parece plenamente razoável que venham a ser utilizados sem essa finalidade. Aliás, a legislação brasileira, como observamos, admite essa possibilidade em relação ao convênio em diversas ocasiões.
E as demais figuras referidas no art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 8.429/1992?
O contrato de gestão foi previsto na Lei nº 9.637/1998. Trata-se do ajuste passível de ser celebrado, entre Poder Público e pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades se enquadrem no arquétipo legal (v.g.: ensino e saúde), e que recebam a qualificação, do Poder Executivo, de organização social. Essa espécie de contrato, em razão das próprias características do contratado, tende a prever o repasse de recursos públicos. Em razão da promiscuidade terminológica que tem caracterizado a nossa ordem jurídica, é oportuno lembrar que a Lei nº 9.649/1998 dispôs, em seus arts. 51 e 52, sobre a qualificação, como agência executiva, de autarquia ou fundação que tenha celebrado contrato de gestão com o Ministério competente, de modo a “assegurar a sua autonomia de gestão, bem como a disponibilidade de recursos orçamentários e financeiros para o cumprimento dos objetivos e metas definidos nos Contratos de Gestão”. Poucos dias depois, foi promulgada a Emenda Constitucional nº 19/1998, que acresceu o § 8º ao art. 37 da Constituição de 1988, dispondo sobre a celebração destes contratos, embora não tenha utilizado a expressão “contrato de gestão”. A explicação se faz necessária na medida em que o art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 8.429/1992 se refere ao contrato de gestão disciplinado pela Lei nº 9.637/1998, não àquele mencionado pela Lei nº 9.649/1998, celebrado com autarquia ou fundação, entes que integram a Administração Pública indireta, sendo, portanto, sujeitos passivos em potencial do ato de improbidade.
O termo de parceria foi previsto na Lei nº 9.790/1999, seguindo a mesma lógica do contrato de gestão, com a distinção que é celebrado com as pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, que recebam a qualificação, do Poder Executivo, de organização da sociedade civil de interesse público.
Em relação à compreensão do “ajuste administrativo equivalente” a que se refere o art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 8.429/1992, merece referência a Lei nº 13.019/2014, que também restringiu o uso do convênio e foi solenemente ignorada.
Em 23 de janeiro de 2016, entrou em vigor a Lei nº 13.019, de 31 de julho de 2014, denominada de “Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil”, que dispõe sobre o atual regime jurídico das parcerias voluntárias, envolvendo, ou não, transferências de recursos financeiros entre a Administração Pública e as organizações da sociedade civil. Antes de sua entrada em vigor, esse diploma legal foi consideravelmente modificado pela Lei nº 13.204/2015. Dentre as modificações, verifica-se o surgimento da modalidade denominada de “acordo de cooperação”, instrumento que formaliza as parcerias estabelecidas pela Administração Pública com organizações da sociedade civil, visando à consecução de finalidades de interesse público que não envolvam a transferência de recursos financeiros (art. 3º, VIII-A). Não é, portanto, instrumento que se preste à instrumentalização de ajustes entre órgãos ou entidades públicas em que não haja transferência de recursos financeiros, o que deve ser feito por meio do “acordo de cooperação técnica” ou do “acordo de adesão”, conforme haja, ou não, livre pactuação das respectivas cláusulas (vide Decreto nº 11.531/2023). Com isso, foram complementados os dois instrumentos previstos na primeira versão da Lei, que são o termo de fomento e o termo de colaboração.
No que concerne às duas modalidades preexistentes, o termo de fomento e o termo de colaboração, destaca-se que ambas têm por finalidade a transferência voluntária de recursos para a execução de planos de trabalho em regime de cooperação com organizações da sociedade civil, tendo, como única diferença, a iniciativa da respectiva parceria. No termo de colaboração, a proposta de parceria é de iniciativa da Administração Pública, enquanto no termo de fomento é de iniciativa da entidade do terceiro setor (art. 3º, VII e VIII).
Na sistemática introduzida pela Lei nº 13.019/2014, com as modificações da Lei nº 13.204/2015, a modalidade de parceria denominada “convênio” somente poderá ser celebrada entre duas ou mais entidades públicas ou, exclusivamente na área de saúde, com entes privados. É o que dispõem os arts. 84 e 84-A, in verbis: “Art. 84 - Não se aplica às parcerias regidas por esta Lei o disposto na Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Parágrafo único. São regidos pelo art. 116 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, convênios: I - entre entes federados ou pessoas jurídicas a eles vinculadas; II - decorrentes da aplicação do disposto no inciso IV do art. 3º. Art. 84-A - A partir da vigência desta Lei, somente serão celebrados convênios nas hipóteses do parágrafo único do art. 84”. Ressalte-se que o art. 3º, IV, da Lei nº 13.019/2014 se refere à possibilidade de serem celebrados convênios e contratos com entidades filantrópicas e sem fins lucrativos para a sua atuação no âmbito do SUS, nos termos do art. 199, § 1º, da Constituição da República.
O Capítulo II da Lei nº 13.019/2014 (arts. 5º a 41), conquanto intitulado “da celebração do termo de colaboração ou de fomento”, passou a ter, após o advento da Lei nº 13.204/2015, diversas normas aplicáveis aos acordos de cooperação [v.g.: “o regime jurídico de que trata esta Lei...” deve observar diversos princípios (art. 5º, caput); a organização da sociedade civil deve divulgar na internet “todas as parcerias celebradas com a administração pública (art. 11, caput); “para celebrar as parcerias previstas nesta Lei...” as organizações devem ser regidas por normas internas que atendam certos requisitos (art. 33, caput); “o termo de fomento, o termo de colaboração e o acordo de cooperação somente produzirão efeitos jurídicos após a publicação dos respectivos extratos no meio oficial de publicidade da administração pública” (art. 38) etc.]. Como se percebe, a atecnia é total. Sempre que a lei não dispuser que certas normas somente são aplicáveis aos termos de fomento e de colaboração, fazendo menção genérica às parcerias, os seus efeitos projetar-se-ão, igualmente, sobre os acordos de cooperação.
O chamamento público, nos termos do art. 24, não é necessário para a celebração do acordo de cooperação, o que torna esse instrumento bem semelhante aos tradicionais convênios, o mesmo ocorrendo em relação aos requisitos do plano de trabalho, previstos no art. 22. Como não há transferência de recursos, afasta-se a principal razão para a prestação de contas, o que não dispensa a necessidade de verificação do cumprimento dos objetivos e das metas estabelecidas.
O acordo de cooperação, de qualquer modo, está sujeito às normas gerais do regime jurídico de que trata a Lei nº 13.019/2014 (arts. 5º e 6º). A organização que o celebra pode participar da capacitação promovida pelos entes federativos (art. 7º), deve divulgar os acordos celebrados na internet (art. 11) e atender certos requisitos formais e de organização interna (arts. 33 e 34). É necessária, ainda, a emissão de pareceres técnico e jurídico sobre a possibilidade de celebração (art. 35, VI e § 2º). Incidem as vedações referidas nos arts. 39 e 40. Quanto à formalização e à execução, o acordo de cooperação deve observar as cláusulas essenciais referidas no art. 42, as regras de alteração constantes dos arts. 55 e 57 e a exigência de monitoramento e avaliação, por parte da administração pública, prevista nos arts. 58 a 60, incluindo as obrigações de fiscalização do gestor (arts. 61 a 62). No mais, são passíveis de aplicação as penalidades cominadas no art. 73. A existência de sistemática legal específica bem demonstra que a utilização de designativo diverso, para a celebração de ajuste dessa natureza, pode encobrir o real objetivo de afastar a aplicação das normas de regência.
O pouco rigor terminológico voltou a ser evidenciado com a Lei nº 14.628/2023, que instituiu o Programa de Aquisição de Alimentos e o Programa Cozinha Solidária. No âmbito deste último programa, é permitido que a União firme contratos de parceria com os entes federativos, consórcios públicos e organizações da sociedade civil, observado neste caso o disposto na Lei nº 13.019/2014 (art. 18, caput). O instrumento a ser utilizado é o “contrato de parceria”, no qual há transferência de recursos e prepondera a convergência de interesses, não sendo caracterizado pela existência de interesses contrapostos. O curioso é a remissão à Lei nº 13.019/2014, que não disciplina o referido “contrato de parceria”. O único sentido útil passível de ser atribuído ao preceito é o de que o “contrato de parceria” foi visto como gênero que alberga o “termo de fomento” e o “termo de colaboração”, ajustes contemplados na Lei nº 13.019/2014 em que há repasse de recursos financeiros.
Epílogo
Ainda que não haja uniformidade terminológica em relação à maioria dos significantes utilizados pelo Poder Público, ao celebrar ajustes caracterizados pela convergência de interesses, nos quais não são identificados os referenciais de prestação e contraprestação, em muitos há indiscutível precisão conceitual. Essa constatação decorre do fato de serem estabelecidos pela própria lei. Nesses casos, exige-se atenção por parte do operador do direito, pois a utilização de significantes inadequados pode trazer consigo a aplicação de sistemática jurídica distinta da devida, o que caracterizará nítida injuridicidade.
[1] Teoria geral do negócio jurídico, Tomo 2. Trad. de Fernando de Miranda. Coimbra: Coimbra Editora, 1969, p. 198.