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O acordo de não persecução cível e o momento de celebração

Sumário: 1. Aspectos introdutórios; 2. A teleologia do direito sancionador. 3. O consequencialismo na produção normativa e na interpretação jurídica. 4. A proporcionalidade no direito sancionador. 5. O objetivo da consensualidade no âmbito do direito sancionador. 6. A transição entre juízos de verossimilhança e de certeza na celebração do acordo de não persecução cível. Epílogo.  Referências.

 

1. Aspectos introdutórios

O acordo de não persecução cível foi introduzido em nossa legislação pela Lei nº 13.964/2019, também conhecida como Pacote Anticrime, vindo a ser detalhado pela Lei nº 14.230/2021. Sua origem remonta ao trabalho da Comissão de Juristas instituída pelo Presidente da Câmara dos Deputados em ato de 22 de fevereiro de 2018 (Diário da Câmara dos Deputados de 23/02/2018, p. 9), com o objetivo de que fosse elaborado anteprojeto de alteração da Lei nº 8.429/1992. Como integrante da Comissão[1], apresentei a proposta de criação desse instrumento, que foi integrado ao texto entregue ao Presidente da Casa Legislativa na primeira quinzena de julho de 2018, dando origem ao PL nº 10.887, subscrito pelo Deputado Roberto de Lucena (Poder-SP) em 17 de outubro de 2018,[2] que deu origem à Lei nº 14.230/2021.

 Ao optar pela designação atribuída ao novo instituto, inspirei-me no acordo de não persecução penal, inserido em nossa ordem jurídica, pouco menos de um ano antes, pelo Conselho Nacional do Ministério Público (Resolução nº 181/2017). Não o denominei de “acordo de não persecução administrativa” por estarmos no âmbito do direito sancionador cível, não na esfera do direito sancionador administrativo[3]. A proposta que apresentei à Comissão somente previa o seu uso como instrumento da consensualidade de colaboração, em que o agente deve oferecer algo ao Poder Público para que o ajuste seja celebrado (v.g.: informações sobre os demais autores do ilícito), o que logo evoluiu para abranger, igualmente, a consensualidade de pura reprimenda, na qual não há essa exigência. Outra preocupação que me direcionou, também acolhida pela Comissão, foi a de assegurar a unidade do Ministério Público, exigindo-se a aprovação do acordo pelo órgão com atribuição para arquivar o inquérito civil, Conselho Superior ou Câmara de Revisão, com posterior homologação judicial. Esta última exigência era compatível com a natureza das sanções cominadas ao ato de improbidade, com destaque para a perda da função pública e a suspensão dos direitos políticos, as quais somente se tornam operativas com o trânsito em julgado da sentença condenatória. Além disso, era sensível à constatação de que nosso sistema adota o padrão de o órgão competente para aplicar as sanções também ser competente para homologar o acordo que lhes diga respeito.[4]

Com o objetivo de superar a vedação ao uso da consensualidade em relação aos atos de improbidade administrativa, o que constava da redação original do art. 17, § 1º, da Lei nº 8.429/1992, o Poder Executivo, pouco tempo após a conclusão dos trabalhos da Comissão, mais especificamente em 19 de fevereiro de 2019, apresentou o PL nº 882/2019, parte do denominado “Pacote Anticrime”. Em seu art. 6º, alterava o § 1º do art. 17 da Lei nº 8.429/1992 para dispor que “a transação, o acordo ou a conciliação nas ações de que trata este artigo poderão ser celebradas por meio de acordo de colaboração ou de leniência, de termo de ajustamento de conduta ou de termo de cessação de conduta, com aplicação, no que couber, das regras previstas na Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, e na Lei nº 12.846, de 1º de agosto de 2013”. Esse preceito, como se percebe, aglutinava instrumentos com funcionalidades e formas de operatividade bem distintas entre si, o que levou o Congresso Nacional a utilizar o texto elaborado pela Comissão na redação a ser atribuída ao novel art. 17-A da Lei nº 8.429/1992. A aprovação se deu no âmbito do substitutivo ao PL nº 10.372/2018, de autoria dos Deputados José Rocha (PR-BA) e outros, adotado pelo relator da Comissão Especial instaurada para apreciar a matéria. Ao receber o PL nº 6.341/2019, numeração que lhe foi atribuída no âmbito do Senado Federal, e que deu origem à Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), o Presidente da República vetou, entre outros preceitos, o art. 17-A, sob o argumento de ser incongruente a atribuição de legitimidade privativa ao Ministério Público para a celebração do acordo, embora a Fazenda Pública tivesse legitimidade disjuntiva e concorrente para o ajuizamento da ação civil. O Chefe do Poder Executivo estava correto. Afinal, no anteprojeto da Comissão, a legitimidade privativa atribuída ao Ministério Público para a celebração do acordo estava associada à proposta de legitimidade privativa para o ajuizamento da ação, temática na qual a Lei nº 13.964/2019, não incursionou. Com o veto ao art. 17-A, remanesceram apenas as alterações promovidas pela Lei nº 13.964/2019 nos §§ 1º e 10-A do art. 17 da Lei nº 8.429/1992, que previam o instituto, mas sem detalhá-lo. Com a edição da Lei nº 14.230/2021, foi inserido um art. 17-B na Lei nº 8.429/1992, que disciplinou o procedimento a ser observado para a celebração do ajuste.

Com as modificações introduzidas pela Lei nº 14.230/2021, tanto a legitimidade para ajuizar a ação por ato de improbidade administrativa como para celebrar o acordo de não persecução cível foram concentradas no Ministério Público (Lei nº 8.429/1992, arts. 17, caput, e 17-B, caput), o que foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, por entender que o não reconhecimento da legitimidade da pessoa jurídica lesada reduzia a proteção ao bem jurídico tutelado[5].

O objetivo de nossas reflexões é o de identificar a interpretação a ser dispensada ao §4º do art. 17-B da Lei nº 8.429/1992, segundo o qual “o acordo a que se refere o caput deste artigo poderá ser celebrado no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou no momento da execução da sentença condenatória”. Para a realização da análise, levaremos em consideração a teleologia do direito sancionador, alguns aspectos do consequencialismo, a funcionalidade do critério de proporcionalidade e o objetivo da consensualidade nesse plano do direito positivo brasileiro.

 

2. A teleologia do direito sancionador

Em uma perspectiva puramente teleológica, o Direito deve sempre buscar a realização da justiça.[6] Além das inúmeras construções teóricas a respeito da concepção de justiça, esse fim pode ser alcançado com a realização de distintos objetivos parciais, cada qual ostentando uma funcionalidade específica no ambiente sociopolítico. As normas de direito sancionador, a exemplo de qualquer padrão normativo, são instrumentos de regulação social.[7]

Como já tivemos oportunidade de observar[8], ao afirmarmos que a “justiça é cega”, buscamos realçar que seus julgamentos são imparciais, que todos os argumentos apresentados serão valorados e que seu poder de coerção alcançará indistintamente a todos. A representação artística da justiça é realizada por meio de uma mulher, com olhos vendados, segurando uma balança e uma espada. Essa figura representaria um ideal: a correta administração da justiça. Subjacente ao valor imparcialidade, ter-se-ia o ideal, a direção permanente, o objetivo primordial de que a atuação da justiça seja sempre imparcial. Apesar de ambos serem revelados a partir de juízos valorativos, o ideal seria a parte operativa do valor.

O direito sancionador tem funcionalidades próprias, produzindo certos efeitos no ambiente sociopolítico. A forma como é normalmente estruturado permite que desempenhe funções de natureza: (a) ideológica, contribuindo para o desenvolvimento de uma base de valores refratária à ilicitude; (b) preventiva, fazendo surgir o receio da sanção para os prosélitos do ilícito, daí decorrendo tanto os referenciais de prevenção geral como de prevenção especial; e (c) retributiva, em que é atribuída ao infrator uma expiação em patamares diretamente proporcionais à sua conduta, que é compreendida não só na perspectiva do ilícito praticado, como em relação aos atos praticados em momento posterior ao ilícito (v.g.: colaborando com as autoridades para a identificação de outros infratores).

A operacionalização de cada uma dessas feições ocorrerá não só no processo de estruturação normativa, como, principalmente, no momento em que o direito sancionador se projetar na realidade. Cada ramo do direito sancionador irá proteger uma objetividade jurídica específica e disciplinará os instrumentos a serem utilizados para a realização desse objetivo.

Ao direcionarmos nossa atenção à sistemática instituída pela Lei nº 8.429/1992, observamos que o objetivo almejado, nos termos do seu art. 1º, caput, é o de tutelar “a probidade na organização do Estado e no exercício de suas funções, como forma de assegurar a integridade do patrimônio público e social”. Esse objetivo há de permear, em uma perspectiva geral, o enquadramento tipológico, a adoção de medidas cautelares, a prolação de atos decisórios e a celebração do acordo de não persecução cível. Em uma perspectiva concreta, será preciso identificar a justa medida das sanções a serem aplicadas ao autor do ilícito, o que deve estar conectado ao objeto geral desse sistema de responsabilização e às funções do direito sancionador, nas perspectivas ideológica, preventiva e retributiva.

Na transição do plano teórico-normativo para o realístico, o direito sancionador é influenciado pelo pensamento consequencialista, que torna juízos valorativos e decisórios particularmente sensíveis aos efeitos a serem produzidos na realidade, considerando as peculiaridades do caso concreto.

 

3. O consequencialismo na produção normativa e na interpretação jurídica

Ao falarmos das consequências de um ato ou fato, estamos nos referindo, de modo geral, aos efeitos que produz na realidade. Com os olhos voltados aos atos, que consubstanciam ações humanas voluntárias, é intuitivo que a análise desses efeitos mostra-se extremamente útil nos universos valorativo e decisório. Afinal, contribuirá para o delineamento do processo decisório, de modo a auxiliar na escolha, entre as distintas opções existentes, daquela que gere as consequências mais adequadas à perspectiva do prolator da decisão ou de outros interessados, além de influir na realização dos juízos valorativos a respeito dessa decisão, que será avaliada, a priori ou a posteriori, justamente sob a ótica desses efeitos. As consequências, apesar de se projetarem na realidade em momento posterior à decisão, podem ser objeto de consideração em momento anterior, em potência, influindo no próprio surgimento do seu alicerce de sustentação.

Ainda que o prolator da decisão tenha desconsiderado as consequências que dela adviriam, o normal é que sua correção ou incorreção, justiça ou injustiça, seja avaliada justamente à luz dessas consequências. O consequencialismo, com escusas pela tautologia, está centrado na análise das consequências do ato. Estão incluídas sob essa epígrafe as construções teóricas que buscam justificar uma escolha cotejando-a com os seus efeitos na realidade. Em razão de suas próprias características, pode espraiar-se por todas as searas em que haja voluntarismo no agir, de modo a compor o universo valorativo do ser e, consequentemente, a influir no processo de formação da vontade.

Reflexões de natureza consequencialista podem ser estruturadas a partir de inúmeras variáveis, que tendem a apresentar profundas distinções conforme a área do conhecimento objeto de análise. Análises realizadas por médicos, engenheiros, advogados e juízes, por exemplo, em razão das especificidades que ostentam, somente poderiam ser aproximadas, no plano consequencial, a partir de conclusões generalíssimas, baseadas em juízos como bom e ruim, aceitável e inaceitável, justo e injusto etc. Afinal, o médico direciona suas ações à preservação da saúde, de modo que as consequências dos seus atos serão avaliadas sob esse prisma; o engenheiro, à higidez e à funcionalidade do projeto que executa; o advogado, à satisfação dos interesses do cliente; e, o juiz, à materialização do justo.

Mesmo no âmbito da ciência jurídica, essas variações tendem a apresentar profundas distinções conforme a natureza da atividade desenvolvida, o ramo do direito objeto de análise e o sistema jurídico em que inserido. A atividade do legislador, que realiza intensos juízos de prognose, inclusive em relação ao impacto da atividade legislativa, é bem distinta daquela desenvolvida pelo intérprete, que utiliza uma base textual pré-estabelecida, que serve de diretriz e de balizamento para as suas decisões; preceitos normativos afetos ao direito civil e ao direito penal tendem a ser interpretados à luz de teorias e métodos bem diferentes daqueles afetos ao direito constitucional; e cada sistema jurídico, além de suas características estruturais, que podem conferir maior importância ao direito legislado ou aos precedentes judiciais, é moldado para uma dada sociedade, que possui a sua própria cultura, alicerce de sustentação não só do sistema como da base dogmática que lhe serve de alicerce.

O consequencialismo, enquanto teoria, associa a escolha à melhor consequência, mas não precisa assumir posição a respeito de qual é a melhor consequência. Na medida em que o seu comprometimento é essencialmente metódico, são necessárias construções teóricas específicas a respeito da substância das distintas opções disponíveis, o que permite a identificação daquela que produzirá as melhores consequências. O utilitarismo, por exemplo, é uma espécie de filosofia consequencialista que associa o bem à felicidade ou ao prazer do maior número; o hedonismo, por sua vez, em sua busca incessante pelo prazer como modo de vida, tende a não só aceitar como a buscar a impunidade, isto ao menos na perspectiva do infrator.

As características essenciais do consequencialismo indicam que o seu objetivo é o de permitir o surgimento de normas cujo efeito sobre a realidade seja considerado ótimo à luz de determinadas variáveis tidas como relevantes pelo intérprete. Ainda que seja outro o designativo atribuído, estaremos perante métodos dessa natureza quando for esse o objetivo do intérprete. Os consequencialistas, como advertiu Pettit,[9] formam um conjunto heterogêneo, apresentando sensíveis divergências a respeito da forma como deve ser definida a natureza das consequências que devem direcionar a análise das escolhas possíveis. O argumento consequencialista, embora seja sua feição mais importante, pode ser visto como espécie do gênero argumento pragmático a que se referiram Perelman e Olbrechts Tyteca.[10]  Aliás, merece referência, na doutrina brasileira, o importante trabalho de Thamy Pogrebinschi[11], que subdividiu o pragmatismo nas perspectivas (a) do antifundacionalismo, que afasta concepções apriorísticas; (b) do consequencialismo, indicando que o significado ou a verdade de uma proposição somente pode ser analisada na perspectiva das suas consequências; e (c) do contextualismo, que busca compreender a influência de aspectos circunstanciais, afeto ao contexto, na estruturação de uma proposição.

Ainda que não venhamos a adotar concepções puramente pragmáticas, a exemplo da tópica pura e do realismo jurídico, que podem se afastar por completo de padrões normativos estabelecidos por agentes dotados de legitimidade democrática, e avançar no delineamento da solução mais adequada ao caso concreto, com abstração de qualquer diretriz previamente estabelecida, é factível que, entre diversas soluções possíveis, optar-se-á por aquela que produza os melhores efeitos na realidade.

E quais são os melhores efeitos a serem produzidos?

O consequencialismo pode ser concebido em uma perspectiva mais ampla, in genere, como objetivo geral, ou ser direcionado a uma situação concreta. Na primeira perspectiva, possuem feições dessa natureza as construções teóricas que estabelecem os objetivos gerais de determinado ramo do direito e influem na produção normativa, sendo também por ela influenciados. É o que se verifica, no âmbito do direito penal, em relação às construções sobre o caráter retributivo ou educativo da pena, bem como sobre os seus objetivos de prevenção geral e de prevenção especial.[12] Já na segunda perspectiva temos o seu universo de desenvolvimento na aplicação normativa, ponto culminante da interpretação jurídica. Afinal, a atividade intelectiva desenvolvida pelo intérprete somente alcançará um resultado ótimo à luz das peculiaridades do caso concreto. É nesse momento, no plano do direito sancionador, que se verifica a aplicação da sanção cabível, norteada pelo referencial de proporcionalidade. O consequencialismo deve ser particularmente sensível à constatação de que a amenização exagerada das consequências do ilícito pode simplesmente inviabilizar o surgimento de uma ideologia refratária à sua prática, além de estimular que novos ilícitos sejam praticados.

 

4. A proporcionalidade no direito sancionador

Uma análise de viés consequencialista deve se espraiar sob múltiplos aspectos afetos à projeção do direito sancionador na realidade, considerando as suas funções ideológica, preventiva e retributiva. Apesar disso, não há dúvidas de que, na perspectiva do infrator, as atenções se voltam à última dessas funções, em que sobressai o critério de proporcionalidade, cuja principal funcionalidade é a de estabelecer limites às restrições aos direitos fundamentais.[13] Esse critério impõe a obrigação de o Poder Público utilizar meios adequados e interdita o uso de meios excessivos. Na construção de Robert Alexy, a restrição aos direitos fundamentais estará em harmonia com o critério de proporcionalidade em sendo observados os seus três elementos constitutivos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.[14]

Consoante o primeiro elemento, a restrição deve ser apta a alcançar a consecução do interesse público, devendo estar presente uma relação de adequação entre o meio utilizado e o fim visado, importando em nítida vedação ao arbítrio. Observe-se, ainda, que a relação meios/fins (Zweck-Mittel) apresentará nuances distintas nas esferas legislativa e jurisdicional, pois à primeira é conferida  maior liberdade de conformação, o que é justificável por adotar medidas em relação a situações de risco potencial e abstrato, enquanto o juiz, em regra, atua frente a situações atuais e concretas.

A restrição será necessária quando não exceder os limites indispensáveis à consecução do objetivo almejado, devendo-se preferir o meio menos lesivo aos direitos fundamentais. Em havendo possibilidade de escolha de outro meio, com idêntica eficácia, passível de impor menores limitações aos direitos individuais, a norma não será necessária e, consequentemente, será desproporcional.[15]

A proporcionalidade em sentido estrito, verdadeiro mandamento de ponderação, indica que a restrição imposta pela norma deve ser inferior ao benefício que se pretenda obter com a sua edição, sob pena de infração ao critério de proporcionalidade e consequente inconstitucionalidade.  Não basta que a norma seja ade­qua­da e necessária à satis­fa­ção de deter­mi­na­do direi­to, sendo impres­cin­dí­vel a com­pro­va­ção, a par­tir de um exer­cí­cio de pon­de­ra­ção, que a opção pelo direito preferente oferece maiores vantagens que a carga coativa imposta ao direito preterido.

É cons­tan­te­men­te invocado o argu­men­to de que a ado­ção do critério de proporcionalidade impor­ta­ria no surgimen­to da “jus­ti­ça do caso con­cre­to”, com­pro­me­ten­do a segu­ran­ça jurí­di­ca que emana das nor­mas in abs­tra­to e deses­ta­bi­li­zan­do o pró­prio prin­cí­pio da sepa­ra­ção dos pode­res. Apesar da ampla permeabilidade do prin­cí­pio aos valores, sua apli­ca­ção, ainda que ris­cos de abu­sos existam, não pode ser des­car­ta­da, pois enten­di­men­to con­trá­rio cul­mi­na­ria em defla­grar uma nítida invo­lu­ção para o posi­ti­vis­mo legalista.

Apesar de ser mais comum a compreensão da proporcionalidade na perspectiva da vedação ao excesso, de modo a evitar que se restringinja de forma desmesurada a esfera jurídica individual, não podemos olvidar a vedação à insuficiência, em que há leniência com a conduta do infrator e o bem jurídico não é protegido de forma adequada.

Na perspectiva da Lei nº 8.429/1992, a proporcionalidade deve ser inicialmente considerada ao se analisar a incidência, ou não, desse diploma normativo em uma situação concreta. Ainda que uma conduta seja formalmente enquadrada em sua tipologia, a ausência de afronta à objetividade jurídica tutelada impede a utilização desse sistema de responsabilização. É o que se verifica com o agente público que se apropria de um clips de papel da repartição ou descarta uma caneta ainda em uso. O § 4º do art. 11 da Lei nº 8.429/1992, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, passou a dispor que “os atos de improbidade de que trata este artigo exigem lesividade relevante ao bem jurídico tutelado para serem passíveis de sancionamento e independem do reconhecimento da produção de danos ao erário e de enriquecimento ilícito dos agentes públicos”. Ainda que esse comando se some a um rol mais amplo de iniciativas cujo fim último era o de reduzir não só as condutas passíveis de serem enquadradas no art. 11, como as respectivas sanções, é factível que a preocupação com a proporcionalidade está presente em sua parte inicial e sequer careceria de previsão expressa.

Note-se que a constatação anterior não é em nada afetada pelo disposto no § 5º do art. 12 da Lei nº 8.429/1992, com a redação dada pela Lei nº 14.230/2021, segundo o qual, “no caso de atos de menor ofensa aos bens jurídicos tutelados por esta Lei, a sanção limitar-se-á à aplicação de multa, sem prejuízo do ressarcimento do dano e da perda dos valores obtidos, quando for o caso, nos termos do caput deste artigo”. Para que estejamos perante “atos de menor ofensa aos bens jurídicos tutelados por esta Lei” é necessário que a objetividade jurídica tutelada seja de alguma forma afetada. Neste caso, estaremos perante um ato de improbidade administrativa. Se a objetividade jurídica não for afetada, não haverá que se falar em ato de improbidade ou em ato de improbidade de menor ofensa.

Além disso, a proporcionalidade deve ser considerada no momento de se definir a consequência jurídica desfavorável, entre aquelas previstas no art. 12 da Lei nº 8.429/1992, que o agente sofrerá em razão da prática do ato de improbidade administrativa. As sanções, nos termos do caput desse preceito, “podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato”.

A proporcionalidade, aliás, também deve direcionar a celebração do acordo de não persecução cível, cuja funcionalidade, como veremos, não é a de satisfazer a arbitrariedade do ente celebrante ou premiar a perspicácia do ímprobo. Cada cláusula deve ser justificada pelo interesse público, especialmente quando se evita uma longa disputa judicial, marcada por incertezas e por um elevado custo para os cofres públicos.

 

5. O objetivo da consensualidade no âmbito do direito sancionador

Não é exagero afirmar que a consensualidade é um objetivo a ser sempre perseguido. Contribui para harmonizar e pacificar as relações sociais; atenua a intensa tensão dialética entre os referenciais de lícito e ilícito; acarreta a redução de custos, inerentes à longa tramitação de certas relações processuais, administrativas ou judiciais; e tende a aumentar os índices de satisfação dos envolvidos, que ganham em certeza e celeridade, em patamares sensivelmente superiores àqueles que obteriam ao fim da relação processual[16].

Apesar de a penetração da consensualidade no direito sancionador brasileiro ser fenômeno recente, que remonta há poucas décadas, a sua utilização é extremamente benéfica para o Estado. Além de ser alternativa a uma ampla investigação, que nem sempre alcança resultados ótimos, serve de estímulo para que o infrator retorne ao plano da juridicidade, abrevia o curso do processo sancionador e, a depender das características que sejam atribuídas ao instituto, coloca em permanente risco aqueles que pratiquem os ilícitos em grupo, já que um dos infratores pode sempre decidir colaborar com as autoridades. Pode ser vista, assim, como um “elemento desestabilizador[17] da ilicitude.

A consensualidade no direito sancionador deve ser estruturada com certo cuidado, de modo que os infratores em potencial não venham a utilizá-la, a priori, como mera variável no cálculo das vantagens e desvantagens de suas ações. Esse aspecto torna-se particularmente relevante se o objetivo for generalizá-la para toda e qualquer infração. O bônus decorrente da consensualidade jamais deve ser visto como um prêmio para a ilicitude. Algum ônus deve ser imposto ao colaborador. Somente em situações extremas, pela relevância das informações fornecidas e os reflexos gerados no ambiente sociopolítico, deve ser afastada, de modo amplo e irrestrito, a responsabilização do colaborador.

Os atrativos da consensualidade certamente serão influenciados pela probabilidade de o colaborador ser identificado pelos meios regulares de investigação e vir a ser condenado após o curso regular de uma relação processual, administrativa ou judicial, em que lhe sejam asseguradas as garantias do contraditório e da ampla defesa. Além disso, os custos de um litígio e os reflexos da condenação sobre bens jurídicos relevantes para o colaborador, como a liberdade e a propriedade, também serão considerados.

A consensualidade pode ser direcionada tão somente à cessação de uma prática ilícita ou ao aperfeiçoamento de uma atividade, sem qualquer incursão no plano sancionador propriamente dito, destinando-se, muitas vezes, a evitar a caracterização de um ilícito passível de sanção.

A consensualidade também pode estar funcionalmente voltada à obtenção de um benefício no plano sancionador. Nesse caso, pode assumir os contornos de consensualidade de colaboração ou de pura reprimenda.

A consensualidade de colaboração é caracterizada pela obtenção de um benefício em razão do fornecimento de informações úteis ao Poder Público na realização dos fins previstos em lei. Essa espécie de consensualidade pode ser acompanhada de avaliação judicial ou de homologação judicial: no primeiro caso, o juiz avalia a prova dos autos e decide que benefícios conceder; no segundo, o juiz tão somente homologa o acordo entre as partes, que definem, a priori, a relevância das informações e os benefícios a serem concedidos, podendo, se for o caso, ajustá-lo à juridicidade. Apesar de a voluntariedade no agir ser da essência dessa figura, a exemplo dos clássicos institutos penais da desistência voluntária e do arrependimento eficaz[18], a colaboração exige um plus, vale dizer, que o colaborador forneça informações úteis a outros propósitos correlatos ao ilícito que praticou (v.g.: localização da vítima, individualização de comparsas, descoberta de ilícitos até então desconhecidos etc.). Na consensualidade de pura reprimenda, por sua vez, o autor aceita a imediata oposição de uma restrição em sua esfera jurídica, não sendo necessário que ofereça informações úteis.

O acordo de não persecução cível, na forma como se encontra disciplinado na Lei nº 8.429/1992, pode assumir as feições de consensualidade de colaboração ou de consensualidade de pura reprimenda. Cabe ao Ministério Público ou à pessoa jurídica lesada (vide ADI nº 7.042) analisar a pertinência da sua celebração, considerando as diretrizes estabelecidas pelo art. 17-B da Lei nº 8.429/1992. Nessa perspectiva, merecem destaque as seguintes considerações: (a) não é prevista a obrigatoriedade de haver uma sanção, já que o ressarcimento do dano e a perda dos bens adquiridos ilicitamente não apresentam ontologicamente essa característica, visando apenas o retorno ao status quo, não a imposição de restrições à esfera jurídica alheia; (b) quando o acordo é celebrado pelo Ministério Público em momento anterior ao ajuizamento da ação, deve ser homologado pelo Conselho Superior ou pela Câmara de Revisão, conforme o caso; (c) para o Ministério Público celebrar o acordo, a pessoa jurídica deve ser ouvida, sendo a recíproca verdadeira; (d) a eficácia do acordo está sempre condicionada à homologação judicial; (e) a celebração do acordo deve sempre considerar “a personalidade do agente, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do ato de improbidade, bem como as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso”, claro indicativo de que não há espaço para o capricho e a prepotência, facilmente reconduzíveis à concepção mais ampla de arbítrio; (f) o não cumprimento do acordado impedirá a celebração de novo ajuste pelo prazo de cinco anos, a contar do conhecimento pelo celebrante do efetivo descumprimento. Quanto ao momento da celebração, dedicamos o tópico subsequente à sua análise.  

6. A transição entre juízos de verossimilhança e de certeza na celebração do acordo de não persecução cível

Como adiantamos na introdução deste texto, nossa atenção seria direcionada à interpretação do § 4º do art. 17-B da Lei nº 8.429/1992, segundo o qual “o acordo a que se refere o caput deste artigo poderá ser celebrado no curso da investigação de apuração do ilícito, no curso da ação de improbidade ou no momento da execução da sentença condenatória”. Esse preceito, caso interpretado de modo a privilegiar o potencial expansivo de sua literalidade em detrimento da teleologia do direito sancionador, do consequencialismo na interpretação jurídica, da proporcionalidade na aplicação de sanções e do objetivo da consensualidade no âmbito do direito sancionador, pode oferecer sério risco à coerência sistêmica da Lei nº 8.429/1992.

Com o objetivo de contribuir para a compreensão desse risco, trazemos à baila um precedente do Superior Tribunal de Justiça a respeito dessa temática.

Na Petição nº 14.712-RS[19], apresentada após o agente ser condenado em primeira e em segunda instâncias por ato de improbidade administrativa; ser negado seguimento ao recurso especial, tendo a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça negado provimento ao agravo interno; e após a Primeira Seção negar provimento aos embargos de divergência e aos embargos de declaração, ocorreu a homologação de acordo de não persecução cível.

O agente, outrora integrante da Polícia Federal e que, no momento do acordo, ocupava cargo efetivo em relevante instituição que integra o rol de funções essenciais à justiça, tinha sido condenado à perda da função pública, à suspensão dos direitos políticos, pelo prazo de cinco anos, e ao pagamento de multa no valor de dez vezes a remuneração recebida em 2009. No acordo celebrado com o Ministério Público Federal, foi ajustado o pagamento de um terço da multa, dividida em dez parcelas mensais, sendo afastadas as duas outras sanções. Além disso, foi prevista a suspensão do direito de adquirir, portar ou possuir arma de fogo no exercício da atual função pública; a impossibilidade de voltar a ocupar um cargo policial, o que, como se sabe, pressupõe a prévia aprovação em concurso público, não sendo demais lembrar que o agente voluntariamente deixara a carreira policial para ocupar um cargo de muito maior relevância no âmbito das estruturas estatais de poder; e, por fim, a assunção do compromisso de o agente desistir do recurso extraordinário que interpusera. Na cláusula segunda do acordo, lê-se que: “em atenção aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade e considerando as circunstâncias e consequências diminutas dos atos de improbidade, que não foram suficientes para abalar a confiança e o prestígio que a Polícia Federal tem junto à sociedade, bem assim a sua suficiência para reprimi-los e prevenir novas ocorrências”. Ao homologar o acordo, o Tribunal limitou-se a invocar os termos do ajuste e a ressaltar que o agente mantinha elogiável ficha funcional nos mais de dez anos de exercício no novo cargo.

Como se percebe, no momento da celebração do acordo, o processo já tinha percorrido três instâncias do Poder Judiciário, com a possibilidade de manuseio do vasto repertório recursal oferecido pela nossa ordem jurídica, e exaurido a instância no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Embora houvesse um recurso extraordinário pendente, convenhamos, era grande o desafio para a defesa, considerando os aspectos fáticos da conduta e o fato de a base normativa estar essencialmente situada no plano legal. Naquele momento, o Poder Judiciário entendia que era proporcional à conduta que o agente sofresse, além da multa, as sanções de suspensão dos direitos políticos e de perda da função pública. Se lembrarmos a decisão liminar proferida pelo Supremo Tribunal Federal, em momento anterior, na ADI nº 7.236[20], que suspendeu a eficácia do § 1º do art. 12 da Lei nº 8.429/1992, cujo objetivo era limitar os efeitos da sanção de perda da função pública ao cargo em que o ilícito fora praticado, o risco de o agente ser destituído do novo cargo era mais que plausível. As “medidas substitutivas”, por sua vez, não deixam de ser curiosas, considerando que estar impedido de adquirir, portar ou possuir uma arma de fogo não é propriamente um sacrifício; e o que dirá do compromisso de não voltar à carreira policial, considerando que o agente acabara de deixá-la de modo voluntário.

Também é difícil identificar, em uma relação processual que acabara de concluir a terceira etapa da via-crúcis pela qual rotineiramente passam as ações de responsabilização por ato de improbidade administrativa, como o acordo celebrado atenderia ao disposto na parte final do § 2º do art. 17-B da Lei nº 8.429/1992, segundo o qual devem ser consideradas “as vantagens, para o interesse público, da rápida solução do caso”. Esta exigência foi atendida com o acordo?    

Ainda no bojo das reflexões a respeito da Petição nº 14.712/RS, o que chama verdadeiramente a atenção é o fato de que, em determinado momento processual, na penúltima instância possível no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, entendia-se que a conduta praticada pelo agente deveria ensejar a aplicação das sanções de multa, suspensão dos direitos políticos e perda da função pública. E neste mesmo momento a instituição autora da ação, por meio de membro que atua no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, entendeu que proporcional seria fixar a multa em um terço; afastar as duas outras sanções; e acrescer outras duas medidas desfavoráveis, mais simbólicas que reais. Ato contínuo, para fechar com chave de ouro, o acordo foi homologado, o que significa dizer que o Tribunal encampou a tese que a Justiça não fora justa, estando equivocada até aquele momento, já que proporcional era o acordo de não persecução cível, não as sanções que até aquele momento estavam prevalecendo. O acordo, em certa medida, passou a ostentar uma funcionalidade bem similar à da ação rescisória, com a só distinção de que não se esperou o trânsito em julgado.

O ocorrido no exemplo oferecido pelo Superior Tribunal de Justiça, em que o feito ainda se encontrava em tramitação, pode ser potencializado com a previsão, no § 4º do art. 17-B da Lei nº 8.429/1992, de que é possível a celebração do acordo no momento de execução da sentença condenatória, vale dizer, após o seu trânsito em julgado, considerando que o art. 12, § 9º, da Lei nº 8.429/1992 exige o seu aperfeiçoamento para que as sanções se tornem eficazes. Nesse caso, é importante frisar, sequer incide a limitação oferecida pelo biênio para o ajuizamento da ação rescisória. Com isso, uma decisão transitada em julgado pode ser simplesmente desconstituída sine die.

Também não podemos perder de vista que tanto o Ministério Público como a pessoa jurídica lesada têm legitimidade para ajuizar a ação e celebrar o acordo, o que tende a oferecer um interessante campo de discussão em relação à possibilidade de um ente celebrar o acordo no bojo de relação processual iniciada por outro, não sendo demais lembrar que ambos se manifestam nesse âmbito. Como estamos no plano do direito sancionador, é mais que razoável afirmar que os legitimados não defendem direito próprio, de modo que a proteção da probidade administrativa seria um interesse difuso, logo, não haveria óbice à celebração do acordo por ente outro que não o autor da ação, tese certamente robustecida ao lembrarmos que é necessária a homologação judicial, que ficará a cargo do juízo prevento.

Cumpre questionar: na homologação, o Poder Judiciário deve atuar como mero autômato, tão somente aquiescendo aos termos do acordo celebrado? Uma resposta positiva a esse questionamento pode oferecer sérios riscos à higidez do sistema de responsabilização por atos de improbidade administrativa. Afinal, e se houver conluio entre os celebrantes do acordo? Para evitar deturpações, campo propício ao florescer da má-fé, cremos que os três momentos a que se refere o § 4º do art. 17-B da Lei nº 8.429/1992 podem ser compreendidos na perspectiva dos conceitos de verossimilhança, probabilidade e certeza oferecidos pelo célebre Nicola Framarino Dei Malatesta[21].

De acordo com o mestre italiano, na verossimilhança, tem-se o que é crível. Existe a percepção e a correlata consideração de iguais razões para a afirmação e a negação, sem que haja predominância de qualquer delas. Estamos, aqui, no universo da possibilidade. Como ressaltado pelo mestre, “o possível é a potência capaz de atuar e, do nosso ponto de vista, o ter podido ser uma realidade. A realidade é a potência atuada. A percepção de um objeto, como possibilidade de realidade já explicada, é, para nós, o crível; a percepção de um objeto como realidade incontestável é, para nós, certeza”.

Na probabilidade, tanto os motivos convergentes como os divergentes a determinada tese são julgados dignos de serem levados em conta, na medida dos seus diversos valores, se bem que mais os primeiros e menos os segundos. A probabilidade deriva de dados objetivos, produzindo um estado de alma que é o produto da sua percepção. Além disso, em razão de sua própria natureza, admite gradações. Na medida em que cresçam os motivos convergentes e diminuam os divergentes, cresce a probabilidade, sendo o inverso verdadeiro. Neste último caso, os motivos divergentes devem aumentar sempre em uma medida inferior aos convergentes; caso venham a igualá-los, se extinguiria a probabilidade e poderíamos retornar à verossimilhança; caso os superem, ensejarão o surgimento de uma probabilidade oposta.

Na certeza, ao contrário, os motivos divergentes a determinada tese não merecem racionalmente consideração e, por isso, se afirma. Tal afirmação, nas palavras do mestre, “surge para o espírito humano como correspondente à verdade, e a certeza que dela provém, como qualquer outra certeza, não é senão a consciência da verdade”. A certeza, pelas suas próprias características, é insuscetível de gradação. Em outras palavras, ou há certeza ou não há. No âmbito processual, é o que se convencionou denominar de verdade real ou, em uma perspectiva mais realista, de verdade possível.

Ao associarmos a construção de Malatesta ao percurso a ser percorrido para a obtenção de uma condenação transitada em julgado pela prática de ato de improbidade administrativa, conseguimos compreender que a transição entre os referenciais de verossimilhança, probabilidade e certeza indica o paulatino aumento da sindicabilidade a ser realizada pelo Poder Judiciário em relação aos termos do acordo.

Na fase de investigação, estaríamos perante a verossimilhança, momento em que tanto os motivos convergentes à presença da improbidade administrativa como os divergentes são dignos de serem levados em consideração. Aqui, a liberdade negocial assume os seus contornos mais amplos, mas nem por isso é absoluta.

Ao fim da investigação, é possível o seu arquivamento, o que decorre da probabilidade ou mesmo da certeza de que a improbidade não ocorreu. Para o ajuizamento da ação de responsabilidade pelo ato de improbidade, é preciso a probabilidade, ainda que pequena, de que o ilícito ocorreu. Essa probabilidade, nos termos do § 6º do art. 17 da Lei nº 8.429/1992, estará presente com o cumprimento da exigência de que, na petição inicial, sejam apresentados “elementos probatórios mínimos que demonstrem a ocorrência das hipóteses dos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei e de sua autoria, salvo impossibilidade devidamente fundamentada” (inc. I), e de que seja instruída “com documentos ou justificação que contenham indícios suficientes da veracidade dos fatos e do dolo imputado ou com razões fundamentadas da impossibilidade de apresentação de qualquer dessas provas, observada a legislação vigente” (inc. II). No curso da relação processual, a probabilidade aumentará em gradação na medida em que as condenações sejam exaradas nas sucessivas instâncias, o que conduzirá à paulatina diminuição da liberdade negocial.

No momento em que ocorre o trânsito em julgado da condenação pela prática do ato de improbidade administrativa, tem-se o delineamento da verdade possível, na perspectiva processual, e a sua imutabilidade. A moderna processualística considera coisa julgada a qualidade da decisão judicial contra a qual já não caiba mais recurso[22]. É a denominada teoria da qualificação dos efeitos da sentença. Portanto, na fase de execução da sentença condenatória estamos perante a certeza a que se referiu Malatesta.

Com isso, o escrutínio a ser realizado pelo Poder Judiciário e o ônus argumentativo do ente celebrante do acordo devem ser sucessivamente ampliados em cada uma dessas três fases, ressaltando-se que, no momento de execução, como estamos perante um juízo de certeza realizado pelo Poder Judiciário em relação ao ilícito e à proporcionalidade das sanções, somente a forma de execução é suscetível de ser acordada, não se abrindo a possibilidade de serem afastadas as sanções por deliberação das partes.

 

Epílogo

O largo uso da consensualidade no âmbito do direito sancionador brasileiro tem sido visto, com razão, como um importante instrumento para a realização do ideal de justiça. Afinal, reduz custos, diminui a duração das relações processuais, contribui para a pacificação social e aumenta o nível de satisfação individual. Vantagens à parte, não podemos jamais esquecer que é a consensualidade que opera no âmbito do direito sancionador, não sendo a recíproca verdadeira. No momento em que o acordo de não persecução cível passar a ser utilizado não para densificar os objetivos que motivaram o surgimento da consensualidade nesse âmbito, mas como instrumento de manipulação sistêmica, estaremos alimentando o surgimento de malefício tão gravoso quanto aquele que se buscou combater com a Lei nº 8.429/1992.

 

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[1] A comissão teve como membros o Ministro Mauro Campbell (presidente), Cassio Scarpinella Bueno, Emerson Garcia, Fabiano da Rosa Tesolin, Fábio Bastos Stica, Marçal Justen Filho, Mauro Roberto Gomes de Mattos, Ney Bello (relator), Rodrigo Mudrovitsch e Sérgio Cruz Arenhart.

[2] O primeiro ato normativo a utilizar o instituto cuja criação propus, editado alguns meses após à conclusão dos trabalhos da Comissão, foi o Provimento nº 58, de 14 de setembro de 2018, do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, embora o tenha feito de forma mesclada com o compromisso de ajustamento de conduta. De acordo com o caput do seu art. 5º: “o Ministério Público poderá, conforme as circunstâncias do caso concreto, celebrar acordo de não persecução cível, mediante tomada de Compromisso de Ajustamento de Conduta ou por intermédio de Termo de Composição Extrajudicial”. Apesar disso, previa expressamente a sua homologação judicial (arts. 8º a 10).  

[3] Para a melhor compreensão dos distintos ramos do direito sancionador, vide, de minha autoria: O direito sancionador brasileiro e a homologação judicial do acordo de não persecução cível: alguns pespontos. In: SALGADO, Daniel de Resende; KIRCHER, Luis Felipe Schneider; e QUEIROZ, Ronaldo Pinheiro de. Justiça Consensual. Acordos criminais, cíveis e administrativos. Salvador: Juspodivm, 2022, p. 733.

[4] Para maior desenvolvimento, vide, de minha autoria: Acordo de não persecução cível: a negativa de celebração é suscetível de revisão?. In Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro, nº 83, p. 35, jan.-mar./2022; e Comentários à Constituição Brasileira, vol. 3. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023, p. 641-647.

[5] Pleno, ADIs nº 7.042 e 7.043, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. em 31.8.2022, DJe de 28.2.2023.

[6] Cf.: PICARD, Edmond. Le droit pur. Paris: Ernest Flammarion, 1908. p. 303.

[7] Cf.: WROBLEWSKI, Jerzy; BÁNKOWSKI, Zenon; MACCORMICK, Neil. The judicial application of law. Springer: The Netherlands, 1992. p. 105.

[8] Interpretação Constitucional. A resolução das conflitualidades intrínsecas da norma constitucional. 2ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023, p. 253.

[9] Conséquentialisme, in CANTO-SPERBER, Monique. Dictionnaire d’éthique et de philosophie morale. 3ª ed.  Paris: Presses Universitaire de France, 2001, p. 329 (331).

[10] Tratado da Argumentação (Traité de la Argumentation). Trad. de GALVÃO, Maria Ermantina de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. XX.

[11] Pragmatismo. Teoria Social e Política. Rio de Janeiro: Relume Domará, 2005, p. 23-72.

[12] Cf. FLORIAN, Eugenio. Trattato di Direitto Penale, vol. Primo – Dei Reati e Delle Pene in Generale. Milano: Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1903, p. 10 e ss..

[13] Remetemos o leitor às considerações que realizamos a respeito do tema na obra Conflito entre Normas Constitucionais: Esboço de uma Teoria Geral (2007: 348 e ss.), da qual reproduzimos alguns excertos.

[14] Como fri­sou Robert Alexy, as três máxi­mas fun­da­men­tais que infor­mam o critério de proporcionalidade, ade­qua­ção, neces­si­da­de (pos­tu­la­do do meio mais benig­no) e proporciona­li­da­de em sen­ti­do estri­to (pos­tu­la­do de pon­de­ra­ção pro­pria­men­te dito) são logi­ca­men­te infe­ri­das da própria natu­re­za do prin­cí­pio, dele dedu­zin­do-se (Theorie der Grundrechte. Baden-Baden: Suhrkamp Verlag, 1994, p. 101-104; e Balancing, constitutional review, and representation, in International Journal of Constitutional Law, vol. 3, nº 4, 2005, p. 572-573). No mesmo sentido: GOESEL-LE BIHAN, Valérie. Le controle exerce par le conseil constitutionnel: défense et illustration d’une théorie générale, in Revue Française de Droit Constitutionnel nº 45, 2001, p. 68; e Réflexion iconoclaste sur le contrôle de proporcionalité exerce par le Conseil constitutionnel, in Revue Française de Droit Constitutionnel nº 30, 1997, p. 232.

[15] À necessidade ou exigibilidade da norma, de acordo com Gomes Canotilho, devem ser acrescentados “outros elementos conducentes a uma maior ope­ra­cio­na­li­da­de prática: a) a exigibilidade material, pois o meio deve ser o mais ‘poupado’ possível quanto à limitação dos direitos fundamentais; b) a exigibilidade espacial aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção; c) a exigibilidade temporal pressupõe a rigorosa delimitação no tempo da medida coac­ti­va do poder público; d) a exigibilidade pessoal significa que a medida se limitará à pessoa ou pessoas cujos interesses devem ser sacrificados” (Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 270).

[16] Cf. GARCIA, Emerson. A consensualidade no direito sancionador brasileiro: potencial de incidência no âmbito da Lei nº 8.429/1992. In Revista do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, nº 66, out.-dez./2017, p. 29 e ss..

[17] RIBEIRO, Amadeu e NOVIS, Maria Eugênia. Programa Brasileiro de Leniência: Evolução, Efetividade e Possíveis Aperfeiçoamentos. In: Revista do IBRAC – Direito de Concorrência, consumo e Comércio Internacional, vol. 17, jan.-jun./2010, p. 147 e ss.

[18] O fundamento dessas figuras não é pacífico. A esse respeito, merecem referência a teoria subjetiva, baseada na exigência político-criminal de premiar quem desiste do propósito criminoso (ponti d’oro al nemico che fugge); a teoria dos fins da pena, sob o plano dúplice da prevenção geral e da prevenção especial, levando em conta a menor gravidade da conduta e periculosidade do sujeito; a teoria premial ou do mérito, de modo a recompensar o livre e voluntário retorno ao direito, o qual, embora não apague as consequências da conduta já executada, pode minorá-las; e a teoria objetivo-funcional, que, considerando a complementariedade das teorias, identifica a carência de ofensa ao bem jurídico tutelado, ao que se soma o objetivo da pena. Cf. LATTANZI, Giorgio e LUPO, Ernesto. Codice Penale, vol. II, Il reato, Libro I, artt. 39-58-bis. Milano: Giuffrè Editore, 2010, p. 991-993.

[19] Primeira Seção, Rel. Min. Francisco Falcão, j. em 23.8.2023, DJe de 2.10.2023.

[20] Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. em 27.12.2022, DJe de 10.1.2023.

[21] A lógica as provas em matéria criminal, vol. I. Tradução de Waleska Girotto Siverberg. Brasil: Conan Editora, 1995, p. 57-83.

[22] Cf. Enrico Tullio Liebman. Eficácia e autoridade da sentença. 3ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 37.


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