conamp

Direito das Minorias

             

              Sociedades pluralistas, próprias de ambientes democráticos, são direcionadas pelo relativismo de interesses, ideologias e projetos, o que atribui à Constituição a tarefa de realizar “a condição de possibilidade da vida comum.”[1] O pluralismo é infenso a hegemonias, permitindo o aflorar de individualidades tão distintas quanto incompatíveis entre si. No bojo dessas individualidades, algumas tendem a dar origem a posições majoritárias, em que considerável parcela do grupamento se identifica com as pautas e os valores adotados, enquanto outras formam posições minoritárias, prestigiadas por parcelas reduzidas do mesmo grupamento. A existência de minorias, fruto do pluralismo inerente ao Estado Democrático de Direito, da personalidade individual e da autonomia da vontade, permite que se fale em um “direito das minorias”.[2]

            De modo algo paradoxal, não é incomum, mesmo em ambientes democráticos, que maiorias, no plano quantitativo, sejam dominadas por minorias, o que pode decorrer de uma pluralidade de fatores, a exemplo do poder econômico, de questões culturais ou mesmo da maior capacidade de organização, daí resultando uma primazia de ordem qualitativa. Além disso, não deve ser descartado o uso da força. O direito das minorias não é direcionado às minorias dominantes, que já têm o poder ao seu dispor, mas, sim, às minorias dominadas.

            Na África do Sul, a colonização branca, de origem holandesa (meados do século XVII) e, posteriormente, britânica (início do século XIX), estabeleceu uma intensa separação de ordem cultural, social e religiosa com a maioria negra. Em 1902, após inúmeros conflitos armados, a África do Sul, composta por quatro colônias (Cabo, Natal, Transvaal e Estado Livre de Orange) e três protetorados, passou a ser, efetivamente, possessão britânica, detendo, no entanto, plena autonomia em seus assuntos internos. Nesse contexto, as quatro colônias aprovaram o South Africa Act e, em 1910, constituíram a União Sul-Africana, país independente no âmbito da Commonwealth (Comunidade Britânica de Nações). A partir de 1924, exacerbou-se o nacionalismo e estabeleceu-se a discriminação, nas relações de emprego, em favor dos trabalhadores brancos. Os casamentos inter-raciais foram proibidos a partir de 1927. Em 1948, chega ao poder o Partido Nacionalista, cujo programa de governo era o apartheid (rectius: identidade separada): era a legalização da segregação racial com dominação branca. A institucionalização do apartheid significou uma separação visceral entre brancos e negros, alcançando não só a distinção dos direitos civis e políticos atribuídos a esses grupos, como, também, o domínio cultural, isto com a criação de empresas jornalísticas e emissoras de rádio e televisão voltadas a cada etnia. Face à intensa pressão interna e externa, a África do Sul iniciou o seu isolamento da sociedade internacional: em 1961 retirou-se da Comunidade Britânica de Nações e, em 1974, foi expulsa da Organização das Nações Unidas. Somente no início da década de noventa do século XX iniciou-se, com o Presidente Frederick de Klerk, o processo de abolição do apartheid. Em 1994, foram realizadas as primeiras eleições multirraciais da história da África do Sul e, em maio do mesmo ano, Nelson Mandela, líder do partido vitorioso e preso político por vinte e sete anos, assumiu a Presidência da República. Ao fim desse processo, a África do Sul foi readmitida na Comunidade Britânica das Nações e na Organização das Nações Unidas. A estratégia utilizada por Mandela ao assumir o poder, como amplamente retratado em livros, filmes e documentários, não foi a retaliação, mas a integração com o grupo outrora opressor.

            É evidente que a simplicidade que o reducionismo semântico traz consigo não se projeta no alcance que o direito das minorias realmente representa. Afinal, basta observarmos que em todos os planos relacionais do ambiente sociopolítico teremos minorias, o que é influenciado por fatores como raça, opção sexual, língua, religião e cultura. Mas para que um grupo possa ser verdadeiramente representativo de parcela dos interesses de um povo, podendo receber o designativo de minoria, é necessário que esteja de algum modo conectado a ele, o que normalmente se dá pela tradição, o que possibilita a sedimentação desse liame. A partir dessa constatação, questiona-se: o direito deve tão somente reconhecer a sua existência ou deve avançar e criar condições adequadas para que se desenvolvam e possam adquirir, em igualdade de condições, o status de maioria? As minorias que granjeiam a simpatia e o respeito da maioria tendem a evoluir; já as minorias que despertam a cizânia e o desapreço tendem a enfrentar dificuldades que principiam na convivência e se desdobram na formação da vontade política e na correlata produção normativa. Quanto às últimas, a neutralidade do Estado em relação às suas pautas pode, no extremo, levar à sua extinção.

            A neutralidade indica uma postura de imparcialidade, o que impede a adesão explícita ou o apoio a qualquer das posições existentes. Contextualizando essa concepção no âmbito do Estado e de sua produção normativa, tem-se a necessidade de serem igualmente respeitadas as distintas posições que se insiram no plano da juridicidade, com a correlata impossibilidade de qualquer delas receber tratamento diferenciado.[3] A igualdade formal, nesse caso, não se compromete com a construção da igualdade material. Em extremo oposto, temos a normatização de discriminações positivas com o objetivo de atenuar a real posição de inferioridade de certos grupos. É o que os anglo-americanos denominam de reverse discrimination e os alemães de umgekerter Diskriminierung, indicando o favorecimento dos membros de um grupo historicamente inferiorizado, o que normalmente se dá às expensas ou em detrimento de grupos que, historicamente, ocupam uma aposição de preeminência. As ações afirmativas, expressão utilizada pela primeira vez no direito norte-americano, mais especificamente na Executive Order nº 10.925, de 6.3.1961, subscrita por John F. Kennedy, têm sido largamente utilizadas com esse objetivo.

            As minorias podem ser formadas por nacionais ou mesmo por súditos de outro Estado soberano, o que, no âmbito do direito internacional público, sempre gerou debates em relação à legitimidade, ou não, de serem adotadas medidas direcionadas à sua assimilação pelo Estado dominante. Nessa seara, as primeiras iniciativas de natureza protetiva foram direcionadas à liberdade religiosa. O Tratado de Vestfália, assinado em 24.10.1648 e que tinha como partes o Sacro-Império Romano-Germânico, os outros príncipes alemães, a França e a Suécia, pôs fim ao conflito com aquela potência e, entre outras medidas, reconheceu a soberania dos Estados envolvidos, a possibilidade de cada governante germânico definir a religião em seu território, além de reconhecer que o calvinismo estava amparado pela juridicidade, o que permitiu alianças entre os Estados que o adotavam e os católicos.

            No período imediatamente anterior à criação da Liga das Nações, em 1919, embrião remoto da Nações Unidas, o direito dos tratados abrangia o denominado direito material das minorias, veiculado nos tratados de paz com os países derrotados na Primeira Guerra Mundial; nos tratados celebrados pelos principais aliados para ampliar o território ou criar novos países; e alguns tratados bilaterais. Os celebrantes acordavam que o monitoramento de certos compromissos (v.g.: o direito de manter a prévia nacionalidade; a proibição de discriminação; a liberdade de crença e religião; e o direito ao uso da própria língua) ficaria a cargo da referida organização.[4] No âmbito da organização interna, essa atividade ficava a cargo do Conselho da Liga das Nações, seu principal órgão, cuja atuação poderia ser provocada por qualquer Estado ou pessoa, o que, em relação à última, não só consagrava o acesso direto ao órgão de monitoramento, como estava na vanguarda dos mecanismos de proteção internacional dos direito humanos. Para que uma reclamação fosse inserida na agenda do Conselho, era necessário que um de seus membros anuísse a isso, sendo que o procedimento a ser adotado pelo reclamante, surpreendentemente, não previa a necessidade de exaustão das vias internas. Para evitar a sobrecarga do Conselho, foram estabelecidos comitês de três membros para uma filtragem inicial.[5] Foi inevitável, no entanto, que questões de geopolítica passassem a influir nas decisões do Conselho, aliás, em um quadro bem semelhante àquele que viria a se instalar no âmbito da Organização das Nações Unidas, instituída em 1945 e que sucedeu a Liga; aliou-se a isso o fato de países como Polônia (1934) e Romênia (1935) negarem-se a apresentar novos relatórios a respeito das políticas afetas às minorias.  Apesar da derrocada dessa Organização, não se pode deixar de observar, com Kovács[6], que o seu principal legado foi a mudança de percepção a respeito do que se deve entender como pertencente apenas à jurisdição doméstica.

            Com o surgimento da ONU, prevaleceu o argumento de que o mecanismo de monitoramento dos direitos das minorias seria desnecessário, considerando a aprovação de tratados internacionais que tinham por objeto a proibição do genocídio e da discriminação racial, além da proteção dos direitos humanos. Some-se a isto a tese de que haveria risco de a proteção das minorias desestabilizar Estados, conduzir à intervenção em assuntos domésticos e encobrir o revanchismo territorial.[7] Apesar dessa retração, isto não impediu que as Nações Unidas capitaneassem a adoção de atos de direito internacional direcionados às minorias, a exemplo da Declaração de Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas e Linguísticas, de 1992 (UN Doc A/Res/47/135), e da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas, de 2007 (UN Doc A/Res/61/295). Nesses documentos, foi conferida ênfase à autoidentificação dos indivíduos, por se verem como membros de uma minoria.

            No âmbito regional, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, de 1950, ao proibir a discriminação, dispôs em seu art. 14 que "o gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação".

            A Constituição brasileira de 1988 utiliza o significante minoria em apenas duas oportunidades: ao assegurar que os líderes da minoria, na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, juntamente com os líderes da maioria, tenham assento no Conselho da República, órgão de consulta do presidente da República (art. 89, IV e V). Apesar da não utilização desse significante, o art. 58, §1º, certamente é sensível ao pluralismo, e necessariamente às minorias que a partir dele se formam, ao dispor que, na constituição das mesas e de cada comissão do Congresso Nacional e de suas casas, deve ser assegurada, tanto quanto possível, a representação proporcional dos partidos ou dos blocos parlamentares que participam da respectiva casa. A exigência de proporcionalidade também se apresenta na fixação do número de deputados e na representação, por estado e pelo Distrito Federal, de modo correlato à população (art. 45, §1º); e na composição da comissão representativa do Congresso Nacional durante o período de recesso, que deve ser proporcional à representação partidária (art. 58, §4º).

            Em uma perspectiva mais ampla, a só existência de direitos fundamentais, sem distinguir entre aqueles que são mais caros à maioria ou à minoria, já evidencia a necessidade de que ambas sejam prestigiadas. É possível afirmar que a funcionalidade básica da constitucionalização desses direitos busca, em última ratio, limitar a liberdade de conformação das maiorias ocasionais, formadas a cada ciclo eleitoral, o que é essencial justamente para a proteção das minorias.

Referências

GARCIA, Emerson. Comentários à Constituição Brasileira, vol. 1. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023.

__________. Interpretação Constitucional. A resolução das conflitualidades intrínsecas da norma constitucional. 2ª edição. Editora Fórum, 2023.

KOVÁCS, Péter. The Protection of Minorities under the Auspices of the League of Nations. In: SHELTON, Dinah (ed.). The Oxford Handbook of International Human Rights Law. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 325.

ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Torino: Einaudi, 1992 (12ª reimp. de 2010).

 

[1] ZAGREBELSKY, Gustavo. Il diritto mite. Torino: Einaudi, 1992 (12ª reimp. de 2010), p. 9-10.

[2] Cf. GARCIA, Emerson. Comentários à Constituição Brasileira, vol. 1. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2023, p. 159.

[3] Cf. GARCIA, Emerson. Interpretação Constitucional. A resolução das conflitualidades intrínsecas da norma constitucional. 2ª edição. Editora Fórum, 2023, p. 33.

[4] Cf. KOVÁCS, Péter. The Protection of Minorities under the Auspices of the League of Nations. In: SHELTON, Dinah (ed.). The Oxford Handbook of International Human Rights Law. Oxford: Oxford University Press, 2015, p. 328-329.

[5] Cf. KOVÁCS. The Protection of Minorities..., p. 331.

[6] The Protection of Minorities..., p. 340.

[7] Cf. KOVÁCS. The Protection of Minorities..., p. 335.


Imprimir