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Carta da CONAMP sobre a proteção das Mulheres

Carta da CONAMP sobre a proteção das Mulheres

CARTA DA CONAMP SOBRE A PROTEÇÃO DAS MULHERES

Nos dias 14 e 15 de junho de 2023, em Brasília, foi realizado o Congresso CONAMP Mulheres, com a promoção de debates sobre temas relacionados a vários aspectos da condição feminina na sociedade e no Ministério Público e a ampla participação de membras de todas as unidades e ramos do Ministério Público brasileiro, notadamente sobre seis eixos temáticos: a) atuação do sistema de justiça brasileiro voltado para a promoção da equidade de gênero; b) saúde da mulher e saneamento básico; c) proteção multinível e vitimização feminina; d) violência política de gênero no cenário nacional; e) dignidade existencial feminina; e) equidade de gênero e a realidade da mulher trans no Brasil; f) atuação do Ministério Público com perspectiva de gênero na vanguarda das transformações; f) governança, sustentabilidade, meio ambiente e mulheres em situação de liderança.

CONSIDERANDO que a Constituição Federal de 1988 tem como vetor interpretativo do texto constitucional o princípio democrático fundado no exercício dos direitos sociais e individuais, na liberdade, na segurança, no bem-estar, no desenvolvimento, na igualdade e na justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, baseada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias (Preâmbulo da CF/1988);

CONSIDERANDO que a República Federativa do Brasil foi constituída como um Estado Democrático de Direito, tendo a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos e, dentre seus objetivos, a criação de uma sociedade livre, justa e solidária, com a promoção da erradicação da pobreza e a diminuição das desigualdades sociais, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 1º e 3º, da CF/1988);

CONSIDERANDO que o pluralismo constitui elemento intrínseco do princípio democrático, ensejando a proteção dos mais diversos grupos sociais, de forma a assegurar a proteção de seus direitos, a promover o acesso a serviços e políticas públicas e a garantir a representatividade na formação da vontade política estatal;

CONSIDERANDO que todos são iguais perante a lei e que a igualdade de gênero foi especificamente tratada na Constituição Federal ao explicitar que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, em uma perspectiva de igualdade material, com o fim de promover uma democracia plural e inclusiva (art. 5º, inciso I da CF/1988);

CONSIDERANDO que o Ministério Público tem natureza de instituição permanente, prevista constitucionalmente, com o relevante papel de defender a ordem jurídica, destacando o dever de resguardo e promoção dos direitos humanos fundamentais, a proteção do regime democrático plural e os interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127, caput, da CF/1988);

CONSIDERANDO que o combate à violência contra a mulher importa assegurar o exercício livre e pleno de seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, abrangendo o direito de ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e costumes sociais e culturais, baseados em conceitos de inferioridade e subordinação, a fim de promover seus direitos, em especial: (a) à vida; (b) à sua integridade física, mental e moral; (c) à liberdade e segurança pessoais; (d) à proibição de tortura; (e) à dignidade da pessoa e da família; (f) à igualdade; (g) ao acesso perante tribunal competente; (h) à livre associação; (i) à liberdade de crença e à profissão da fé; e (j) à igualdade de acesso às funções públicas e de participação nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões (arts. 4, 5 e 6, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, Dec. 1.973, de 1º de agosto de 1996);

CONSIDERANDO o dever imposto aos Estados de providências, em qualquer esfera e, em particular, nas searas política, social, econômica e cultural, envolvendo todas as medidas cabíveis para assegurar o pleno desenvolvimento e progresso da mulher, com o objetivo de garantir-lhe o exercício e gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de condições com o homem (art. 3º, da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher);

CONSIDERANDO o conceito de gênero apontado na IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, ultrapassando o mero aspecto biológico para compreendê-lo a partir das relações entre homens e mulheres enquanto padrões determinados social e culturalmente, bem como o empoderamento da mulher como forma dela adquirir o controle do seu desenvolvimento e a necessidade de políticas públicas de promoção da igualdade de gênero, em todas as esferas de atuação governamental, de forma transversal (Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Pequim, 1995);

CONSIDERANDO a necessidade de adoção de medidas para garantir às mulheres igualdade de acesso aos direitos inerentes à dignidade humana, bem como a outros princípios apontados em instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos, a partir de sua participação igualitária em todos os campos sociais, no processo decisório e no acesso ao poder, como forma de aumentar a capacidade das mulheres para participar do processo de tomada de decisões, erradicação da pobreza e crescimento sustentável com base no desenvolvimento e justiça sociais (objetivos estratégicos G.1 e G.2 da Declaração e Plataforma de Ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Pequim, 1995);

CONSIDERANDO que tanto a igualdade de gênero quanto o empoderamento de todas as mulheres e meninas se encontram dentre os objetivos de desenvolvimento sustentável, que buscam a promoção da justiça, da igualdade e da não discriminação, o respeito pela raça, etnia e diversidade cultural, em um contexto de igualdade de oportunidades para a plena realização do potencial humano (Agenda 2030, da ONU);

CONSIDERANDO a necessidade de adoção de medidas em âmbito regional, adaptadas para a realidade encontrada na América Latina e Caribe, a fim de enfrentar os obstáculos estruturais existentes e promover a concretização da Agenda 2030 na região, em especial quanto aos seguintes eixos: (a) a desigualdade socioeconômica e a pobreza; (b) os padrões culturais patriarcais, discriminatórios e violentos e a cultura do privilégio; (c) a divisão sexual do trabalho e a injusta organização social do cuidado; (d) a concentração do poder e as relações de hierarquia no âmbito público (Agenda Regional de Gênero e a Estratégia de Montevidéu para a Implementação da Agenda Regional de Gênero no Âmbito do Desenvolvimento Sustentável até 2030);

CONSIDERANDO a assunção do compromisso de assegurar a mulheres e homens igualdade no gozo dos direitos civis e políticos, dentre os quais se destacam: o direito à autodeterminação como forma de promoção do desenvolvimento econômico, social e cultural e a proibição de grupos ou indivíduos agirem com o fim de destruírem ou limitarem os direitos ou liberdades reconhecidas (Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos);

CONSIDERANDO o compromisso assumido pelo Estado brasileiro com o objetivo de erradicação do preconceito, do combate à discriminação racial e de todas as formas de intolerância, nas esferas pública e privada, em razão de constituírem a negação dos valores universais e dos direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa humana (Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância);

CONSIDERANDO a perspectiva de gênero e raça na análise da violência de gênero, as mulheres negras estão em situação de maior vulnerabilidade, em razão da interdependência entre as formas de opressão estrutural do racismo e do patriarcado.

CONSIDERANDO que a proteção de direitos em uma perspectiva de igualdade de gênero deve ser compreendida de forma a respeitar a orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais do indivíduo, a fim de que possa desfrutar plenamente de todos os direitos humanos através de medidas e ações adequadas para assegurar o desenvolvimento de todos, livres de qualquer forma de preconceitos e discriminação relacionados à percepção de inferioridade ou superioridade de qualquer orientação sexual, identidade de gênero ou expressão de gênero (Princípios 1 e 2, dos Princípios de Yogyakarta);

CONSIDERANDO o direito de todos, independentemente da sua orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais, à proteção do Estado contra qualquer forma de violência, discriminação ou qualquer outro dano, seja cometido por agentes estatais ou por qualquer indivíduo ou grupo (Princípio 30, dos Princípios de Yogyarkarta+10);

CONSIDERANDO a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Ministério Público, instituída pelo Conselho Nacional do Ministério Público, com o objetivo de assegurar igualdade de gênero no ambiente institucional, notadamente a participação de mulheres nos cargos de chefia e assessoramento, em bancas de concurso e como palestrantes, conferencistas, debatedoras e congêneres (art. 1º, da Resolução 259, de 28 de março de 2023);

CONSIDERANDO as importantes contribuições apresentadas pelo Grupo de Trabalho (GT) presidido pelo Conselheiro do CNMP Rogério Magnus Varela Gonçalves, com o objetivo de aperfeiçoamento das tratativas sobre o tema da representatividade feminina nos espaços de poder do Ministério Público.

São realizados os seguintes diagnósticos e estabelecidas as proposições:

DIAGNÓSTICOS

1. Mulheres são mais de 51% da população brasileira, contudo a representatividade feminina em locais de poder e de tomada de decisão política não acompanham esse índice, prejudicando que influenciem na formação da vontade estatal;

2. No âmbito do Ministério Público, inexistem registros históricos sobre o caminho trilhado pelas membras no que se refere à luta pela valorização feminina, bem como acerca da contribuição das mulheres para o fortalecimento institucional em relação à igualdade de gênero e outras diversas áreas de atuação;

3. A posição que a mulher ocupa na organização da vida familiar, os cuidados com filhos e com familiares idosos ou doentes lhes impõe mais de uma jornada de trabalho, o que interfere negativamente na disponibilidade de ocupar cargos de poder e de decisão, em especial os que impliquem acumulação de trabalho ou aumento da carga horária trabalhada;

4. O contexto histórico de exclusão da mulher leva a um cenário de subalternidade feminina (que desconsidera classe social, grau de escolaridade e função exercida, devendo ser analisada dentre os seus pares), que não pode ser desprezada para a formulação de políticas públicas e institucionais inclusivas de participação da mulher no espaço público;

5. A promoção da igualdade de gênero não se contenta com uma perspectiva meramente formal que envolva um padrão de sujeito universal feminino para o desenvolvimento de políticas de enfrentamento, em razão do maior grau de exclusão social sofrida por grupos altamente fragilizados (dentre os quais se encontram as mulheres pretas e LGBTQIAPN+), levando a uma maior sub-representação;

6. As membras do Ministério Público enfrentam dificuldades para ocupar locais de liderança institucional nas unidades e ramos do Ministério Público, repetindo a realidade enfrentada na sociedade em geral;

7. O sexismo, a misoginia, o patriarcado, o racismo e a LGBTQIAPN+fobia são formas de violência simbólica que aprofundam a desigualdade de gênero;

8. O empreendedorismo feminino constitui um importante fator de inclusão social, não somente para as gestoras de seus próprios negócios, mas também para terceiros empregados e colaboradores indiretos, interferindo positivamente no desenvolvimento social;

9. O orçamento deve ser compreendido como instrumento relevante para o enfrentamento à desigualdade de gênero, a partir da destinação de recursos necessários e razoáveis, e da identificação de prioridades que observem as necessidades femininas;

10. Os impactos das mudanças climáticas atingem mais severamente a população mais pobre e, dentre seus integrantes, as mulheres, geralmente responsáveis pela gestão do cotidiano familiar;

11. Adoção de políticas de compliance e de apoio à diversidade não constitui privilégio para a mulher e possui impacto positivo como instrumento de gestão pautado em ESG (políticas de meio-ambiente, responsabilidade social e governança);

12. As estratégias e planos de ação para um futuro sustentável envolvem abordagens multifacetadas com a criação de comitês, capacitação, valorização do relacionamento com outras pessoas, em razão da complexidade e dos desafios que envolvem uma profunda transformação social.

13. A utilização da inteligência artificial pode aprofundar a discriminação algorítmica sob a perspectiva de gênero, uma vez que o seu uso exponencial nos últimos tempos traz preocupações sobre possíveis violações aos direitos fundamentais, pois podem ocultar vieses de preconceito e discriminação de gênero e raça.

PROPOSIÇÕES:

1. Há a necessidade de realizar ações de resgate da memória das mulheres do Ministério Público quanto ao combate à desigualdade de gênero, bem como em outras áreas de atuação institucional, como forma de conhecer o caminho trilhado, valorizar os esforços expendidos e divulgar a contribuição feminina para o fortalecimento do Ministério Público;

2. Em uma perspectiva inclusiva e de igualdade material, que assegure a participação feminina no espaço público, em especial nos locais de poder voltados para a tomada de decisão institucional, há a necessidade de criar formas de combate à subalternidade feminina, através do incentivo para a participação de mulheres em locais de tomada de decisão, medidas de apoio para atender às peculiaridades do público feminino, dentre outras ações, visando permitir a efetiva ocupação paritária de locais institucionais específicos;

3. A promoção da igualdade de gênero deve ser norteada pela inclusão, equidade e emancipação social, vedando qualquer forma de discriminação, tanto no aspecto institucional, quanto no que se refere à atuação do Ministério Público na proteção da mulher, da sociedade e da democracia, através da desconstrução de mitos e estereótipos sociais sobre o papel de gênero;

4. Devem ser desenvolvidos meios específicos de assegurar igualdade de gênero para a mulher preta e LGBTQIAPN+, dentre outros grupos femininos altamente fragilizados, que observem as peculiaridades enfrentadas por cada um deles;

5. É fundamental o enfrentamento do sexismo, da misoginia, do patriarcado, do racismo e da LGBTQIAPN+fobia pelo Ministério Público, enquanto instituição vocacionada constitucionalmente para a defesa da ordem jurídica e do regime democrático plural;

6. São necessárias medidas para a implantação e fomento de políticas de compliance e de apoio à diversidade, bem como de treinamentos específicos, voltados para o empoderamento de mulheres como forma de incentivo à formação de lideranças femininas;

7. Deve ser levada em consideração a relevância da proteção ao meio ambiente, da promoção da saúde, do combate à sonegação fiscal e da análise sobre a aplicação orçamentária, para diminuir desigualdades de gênero, em razão do impacto que possuem para a promoção dos direitos da população feminina;

8. Há a necessidade de criação de políticas de compliance e de apoio à diversidade, e de comitês, a fim de promover o diálogo institucional e a autocomposição voltados para uma gestão do Ministério Público pautada em fundamentos de ESG;

9. É importante a identificação de medidas eficazes para o enfrentamento da discriminação, preconceito e violência, conferindo atenção especial à situação peculiar de mulheres em situação de violência doméstica, não somente no que se refere à adoção de medidas perante o Poder Judiciário, mas também em relação ao fomento de políticas públicas adequadas, como forma de acesso amplo à justiça;

10. O Ministério Público possui papel relevante no combate à desigualdade de gênero e na conscientização para o exercício da cidadania feminina, em face da sua missão constitucional.

11. Cabe ao Ministério Público promover a construção de uma governança da inteligência artificial com respeito aos direitos fundamentais e prevenção a toda forma de discriminação, com a adoção dos princípios insculpidos na Estratégia Brasileira de lA e standards internacionais e a disseminação da cultura do uso ético da IA.

12. O Ministério Público pode desenvolver campanhas de conscientização sobre o fenômeno da violência contra a mulher, através da utilização da tecnologia, a fim de alcançar o maior número de pessoas.

13. O Ministério Público deve investir em ferramentas tecnológicas para auxiliar na efetiva investigação de crimes cibernéticos praticados contra as mulheres, garantindo o enfrentamento da violência de gênero cometidos no ambiente digital.

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