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Sobre a Legitimidade dos Conselhos Federal e Seccionais da OAB para a propositura de ações civis públicas

A respeito de devolver o poder às pessoas. 

I.

É preciso compreender que mudanças -qualquer mudança -no ordenamento jurídico representam etapa de processo dinâmico de tratamento de valores e entendimentos. Seja a dar passo à frente, seja a retroceder. Em outros e melhores termos, não há mudança que reflita estática. Tudo é movimento. No que respeita a diplomas importantes como a Lei da Ação Civil Pública, tudo vai potencializado. Ou muito se avança, ou muito se retrocede.

E justo nesse espaço é que cumpre se examinar qual a função da mudança proposta pelo Projeto de Lei 686/2015, Senado Federal. Em outros e melhores termos, avançamos ou retrocedemos com a legitimidade do Conselho Federal e aos Conselhos Seccionais da OAB à propositura Ações Civis Públicas?

A bem responder a essa indagação, de se notar que a Lei 7.347/85¹ trouxe ao ordenamento jurídico importação do modelo das class actions de modo a que se pudesse enfeixar, numa única demanda, gama de interesses assemelhados a conferir-lhe tratamento uniforme. Cuida-se de atendimento -mesmo precoce, diga-se de passagem, em terras brasileiras -da necessidade contemporânea de oferecer jurisdição para sociedade massificada, de contatos anônimos e diversificados, para qual a artesania do "mover uma ação para cada interesse" inviabilizará -se já não inviabilizou -a prestação jurisdicional. Nessa mesma quadra está a necessidade de se criar ferramenta de enfrentamento judicial às lesões a direitos e bens coletivos, cujo interesse de preservação, e o melhor exemplo é o ambiente, atravessa a barreira intergeracional e se preenche de formato indivisível.

Observação atenta da realidade, contudo, permite concluir que a importação ocorrida em 1985 se deu apenas por metade, sendo que os motivos de tal deficiência decorrem, à toda evidência, do momento histórico da vigência inicial da lei. É que se acha na gênese do instituto das class actions a noção de que a sociedade, por meio de seus instrumentos, de seus desenhos e da ocupação de seus espaços organizacionais é quem haveria de assumir a frente do enfeixamento de seus interesses. Não o Estado e não as instituições formais. E isso porque, ao final de todas as contas, são as pessoas -e apenas as pessoas -os protagonistas das próprias vidas a dizer o que lhes serve e o que não lhes serve.

Por conta dessas razões é que os grandes protagonistas do ajuizamento de ações de classe em outros ordenamentos são, essencialmente, associações ou mesmo cidadãos que, após o atendimento de determinados requisitos, passam a ser identificados por representante ou "falantes em nome" de uma classe ou grupo². 

No caso brasileiro, contudo, a dinâmica precisou diferenciar-se. É que em meados de 1985 o regime autocrático esmagava o exercício da cidadania. E como parece sobremodo evidente: não há associações, organizações sociais que não as estatais ou mesmo cidadãos com condições de articular-se sem a liberdade das democracias. Por conta desse motivo, e unicamente por isso, cumpriu ao Ministério Público tomar a frente do ajuizamento das ações coletivas, incumbindo-se de mover quase que a totalidade dessa espécie de demandas nos primeiros anos.

Ocorre, contudo, que no correr do tempo essa proporção vem diminuindo. E tal verificação, longe de ser retrocesso, importa avanço verdadeiro. Com efeito, é preciso bem compreender que conforme se desenvolve a democracia brasileira, o Estado, por meio de suas instituições públicas, ao invés de buscarem cada vez mais assumir a legitimidade das class actions, deve recuar. Isso a que a sociedade, por primeiro, se organize a partir dos espaços inaugurados pela abertura democrática e, em futuro próximo, principie a construir suas próprias possibilidades de litígio como classe.

Com efeito, era justamente essa a ideia defendida arduamente pela saudosa professora ADA PELLEGRINI GRINOVER em sua sugestão de código para processos coletivos, notadamente em seu artigo 19. A ilustrada professora pregava que o primeiro legitimado para as ações civis públicas fosse o cidadão, que, após o implemento de determinados requisitos, a exemplo da Rule 23, da Federal Civil Procedure americana, estaria habilitado a defender seu interesse, bem como a de classe que viesse a entregar³.

Os movimentos observados de reforma do sistema da Lei da Ação Civil Pública, entretanto, têm sido, infelizmente, no sentido contrário. Num primeiro termo, com a inclusão da Defensoria Pública -mais uma instituição -por legitimada para a propositura de ações civis públicas, o que serviu, com toda a vênia, unicamente à busca de mais espaço institucional do que a melhor atender sua finalidade precípua de proteção dos hipossuficientes.

No que respeita à proposta de legitimação dos Conselhos Federal e das Subseccionais há ainda outro efeito deletério a merecer consideração. É que, segundo se compreende, sua aprovação serve mesmo a desprestigiar os interesses profissionais dos advogados.

Nesse sentido, convém destacar que se o Parlamento, eventualmente, tomar a providência reclamada pela própria história e antevista pela renomada professora ADA PELLEGRINI GRINOVER -e se espera sinceramente que isso ocorra oportunamente -de conferir legitimidade aos cidadãos, cumprirá aos advogados e a ninguém mais lhes assistir. Então, e com todo o respeito, o projeto dá retrocesso mesmo a garantir outros espaços de atuação a todos os advogados do país, em troca de inaugurar, com máxima vênia, espaço de atuação exclusiva aos Conselhos da OAB, repita-se, na contramão do sentido evolutivo desejado à legislação.

II.

Não fossem essas ponderações suficientes, há mesmo outra a ter vez. Veja-se, num primeiro termo, que a redação levada ao corpo da Lei da Ação Civil Pública, Lei 7.347/85, pelo anteprojeto comentado praticamente repete o disposto no artigo 54, XIV, Lei 8.906/94, ao menos no que concerne ao Conselho Federal da OAB.

Ocorre que mesmo diante da previsão já existente -apenas repetida, insista-se -, a jurisprudência tem ofertado modulação a tal legitimidade, de modo a que sirva unicamente à tutela dos interesses coletivos dos advogados4. É que não parece haver sentido em se conceder ampla possibilidade de tutela coletiva -a importar o enfrentamento de litígios a envolver probidade administrativa, preservação ambiental e outros -a entidade que, bem ou mal, se destina essencialmente à representação de interesses de classe profissional.

Em tudo sendo dessa maneira, não parece possível se concordar, rogando-se máxima vênia, com o parecer lançado pelo Senhor Senador Relator no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça de que a inserção de tal dispositivo resolveria as objeções de pertinência apresentadas pelas Cortes Superiores. É que a simples disposição tópica do artigo pouco importará para sua exegese, especialmente porque a leitura realizada pela jurisprudência se insere em contexto de compreensão das funções institucionais conferidas aos eventuais legitimados de modo a estabelecer baliza de pertinência5.

III.
Considerando todos esses fundamentos tem-se, primo, que o estabelecimento de nova possibilidade de legitimação para a propositura de ações civis públicas se coloca na contramão do sentido evolutivo da legislação, cujo destino a buscar haveria de ser ampliar a possibilidade de acesso da sociedade organizada -e não a institucionalizada -ao sistema de justiça. Secundo, acrescenta-se que a modificação pretendida, ao menos no que concerne à legitimidade para o Conselho Federal da OAB, pouco ou nada acrescentará ao óbice lançado pela jurisprudência de que a legitimidade das instituições há de se fundamentar na pertinência de suas funções.

Por derradeiro, ao que tudo se pode compreender, o verdadeiro avanço para o sistema de tutela coletiva é permitir que os cidadãos, organizadamente e não necessariamente por meio de instituições, possam buscar o Poder Judiciário por meio de ferramenta coletiva de jurisdição e não apenas arrolar mais uma instituição pública por legitimada. Em outros e melhores termos, é preciso devolver o poder às pessoas.

 

 

1 Não se desconhece que desde a Lei 6.938/81 já há previsão a que o Ministério Público possa mover ação civil pública em defesa do meio ambiente. Há de se reconhecer, contudo, que a previsão ampla da tutela de interesses coletivos lalo sensu somente veio ao ordenamento jurídico com a Lei 7.347/85, também conhecida por Lei da Ação Civil Pública.

2 Apenas a identificar exemplo, convém apontar, no caso americano, o disposto no Rule 23, da Federal Civil Procedure: "(a) Prerequisites. One ormore members ofa c/ass may sue orbe sued as representa tive parties on behalf ofali members on/y if: (1) the e/ass is so numerous that joinder of ali members is impraeticab/e; (2) there are questions of /aw or faet common to the c/ass; (3) the e/aims or defenses of the representative parties are typica/ of the c/aims or defenses of the e/ass; and (4) the representative parties will fair/y and adequate/y proteet the interests of the c/ass."

3 Art. 19. Legitimação. São legitimados concorrentemente à ação coletiva ativa: I -qualquer pessoa física, para a defesa dos interesses ou direitos difusos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada, demonstrada por dados como: a -a credibilidade, capacidade e experiência do legitimado; b -seu histórico na proteção judicial e extrajudicial dos interesses ou direitos difusos e coletivos; c -sua conduta em eventuais processos coletivos em que tenha atuado; 11-o membro do grupo, categoria ou classe, para a defesa dos interesses ou direitos coletivos, e individuais homogêneos, desde que o juiz reconheça sua representatividade adequada, nos termos do inciso I deste artigo;

4 Por todos: "PROCESSO CIVIL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. ILEGITIMIDADE ATIVA DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. SÚMULA 83/ST J. OFENSA AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA OMISSÃO. INEXIST~NCIA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Cuida-se, na origem, de Ação de Improbidade Administrativa proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil -CFOAB contra a Agência Nacional de Aviaç!lo Civil -Anac e outros. 2. O Juiz de 1° Grau julgou extinto o processo, sem exame do mérito, nos termos do artigo 267, inciso VI, do CPC, por entender que o Conselho Federal da OAB não tem legitimidade para propor Ação de Improbidade Administrativa. 3. O Tribunal a quo consignou na sua decisão: "As razões invocadas pelo apelante não se apresentam capazes de abalarem os fundamentos da sentença, que bem se houve ao afastar a legitimidade do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil -CFOAB para a propositura de aç!lo de improbidade administrativa, cujo objeto não tem pertinência temática entre os fins institucionais da OAB e o bem juridico defendido." "Do exame da inicial, verifica-se que o apelante ajuizou a presente aç!lo de improbidade administrativa contra a Agência Nacional de Aviaç!lo Civil -ANAC por supostos prejuizos decorrentes de suas omissões e atos que culminaram com o conhecido "caos aéreo", requerendo o imediato afastamento dos diretores da Autarquia ré até julgamento final do processo e, ao final, a condenação dos requeridos, solidariamente com a ANAC, nas penas do art. 12,11, da Lei de Improbidade Administrativa, e ao pagamento de multa civil de 2 (duas) vezes os valores dos danos que deram causa." "Assim, legitimado ativo para a propositura da aç!lo de improbidade administrativa é o Ministério Público ou a pessoa juridica interessada, entendida essa aquela enumerada no art. 10 e parágrafo único da Lei de improbidade Administrativa, ou seja, aquela diretamente atingida pelos atos tidos como improbos. Dessa forma, a legitimidade ativa prevista na Lei de Improbidade Administrativa, para o ajuizamento de ação civil pública por ato de improbidade, é taxativa, n!lo comportando interpretaç!lo extensiva para admitir outras legitimações fora do rol nela estabelecido" (grifo acrescentado) (fls. 860-861). 4. A demanda não trata das prerrogativas dos advogados, nem das "disposições ou fins" do Estatuto da Advocacia (art. 49, caput, da Lei 8.906/1994), portanto, não tem o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil -OAB legitimidade para propor Aç!lo de Improbidade Administrativa. 5. Dessume-se que o acórdão recorrido está em sintonia com o atual entendimento deste Tribunal Superior, razão pela qual não merece prosperar a irresignação. Incide, in casu, o principio estabelecido na Súmula 83/STJ. Nesse sentido: REsp 331.403/RJ, ReI. Ministro Jo!lo Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ 29/05/2006, p. 207, AgRg no Ag 1253420/SP, ReI. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 04/05/2011. 6. No mais, a solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, n!lo caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC. 7. Agravo Regimental não provido. (AgRg no AREsp 563.577/DF, ReI. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/0212015, DJe 20/03/2015)

5 Esse fenômeno foi justamente o que ocorreu com a Defensoria Pública, em que a jurisprudência terminou por balizar sua legitimidade para a propositura de ações civis públicas ao implemento de suas finalidades institucionais, quais sejam, representaçao judicial de hipossuficientes. E isso mesmo que se tenha realizado ampliaçao a que tutelados interesses nao apenas de hipossuficientes do ponto de vista econômico, mas também jurídico. Por todos: PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. SERVIDORES PÚBLICOS MILITARES. CONCESSÃO DE AuxiLiO TRANSPORTE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSES DIFUSOS, COLETIVOS OU INDIVIDUAIS HOMOG~NEOS. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA. EXIST~NCIA. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. CONCEITO DE NECESSITADO. CONCEPÇÃO AMPLlATIVA PARA ABRANGER OS HIPOSSUFICIENTES JURIDICOS. PRECEDENTE DESTA CORTE. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. I -Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica -se o Código de Processo Civil de 2015. 11 -O Supremo Tríbunal Federal, ao julgar a ADI n. 3.943/DF, declarou a constitucionalidade do art. 5°, 11 . da Lei n. 7.347/85, com redaçao dada pela Lei n. 11.448/07, consignando ter a Defensoria Pública legitimidade para propor ação civil pública em defesa de direitos difusos, coletivos, e individuais homogêneos. 111 -O Superior Tribunal de Justiça, ao interpretar os requisitos legais para a atuação coletiva da Defensoria Pública , encampa exegese amplialiva da condiçao jurídica de "necessitado". de modo a possibilitar sua atuação em relaçao aos necessitados jurldicos em geral, nao apenas dos hipossuficientes sob o aspecto econômico. Caso concreto que se inclui no conceíto apresentado. IV -A Agravante não apresenta. no agravo, argumentos suficientes para desconstituir a decisão recorrida. V -Agravo Interno improvido. (Aglnt no REsp 1510999/RS, ReI. Ministra REGINA HELENA COSTA, PRI MEIRA TURMA, julgado em 08/06/2017, DJe 19/06/2017)

 



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